'ECONOMIA SOLIDÁRIA SE APROXIMA DAS ORIGENS DO SOCIALISMO' O ECONOMISTA E SOCIÓLOGO PAUL SINGER CONTA COMO O MOVIMENTO SURGIU NO BRASIL
Economista e
sociólogo Paul Singer conta como o movimento surgiu no Brasil e foi
transformado em política pública a partir do primeiro governo Lula, tornando-se
modelo de inclusão social
por Joel
dos Santos Guimarães e Paula Quental, do Brasil Debate
O economista
e sociólogo Paul Singer, titular da Secretaria Nacional de Economia Solidária
(Senaes) desde que esta foi criada, em 2003, no primeiro governo Lula, é um
estudioso da economia solidária e se tornou uma das referências internacionais
no tema, com vários livros publicados.
Apesar de o
nome ter sido criado no Brasil, economia solidária é um movimento que ocorre no
mundo todo e diz respeito a produção, consumo e distribuição de riqueza com
foco na valorização do ser humano. A sua base são os empreendimentos coletivos
(associação, cooperativa, grupo informal e sociedade mercantil).
Hoje, o
Brasil conta com mais de 30 mil empreendimentos solidários, em vários setores
da economia, com destaque para a agricultura familiar.
Eles geram renda para
mais de 2 milhões de pessoas e movimentam anualmente cerca de R$ 12 bilhões.
Nesta
entrevista, Singer mostra como o movimento surgiu no Brasil, inicialmente para
combater a miséria e o desemprego gerados pela crise do petróleo na década de
1970, e se transformou em um modelo de desenvolvimento que promove não só a
inclusão social, como pode se tornar uma alternativa ao individualismo
competitivo das sociedades capitalistas.
Quando e
como surgiu a economia solidária no Brasil?
Ainda sem
esse nome, a economia solidária surgiu no Brasil no bojo da mais terrível crise
pela qual o País passou desde Pedro Álvares Cabral. Foi a crise dos anos 70,
que atingiu toda a América Latina, resultado do choque do petróleo. Os países
não produtores de petróleo ficaram com dívidas enormes. Tiveram que comprar
petróleo a preços cinco vezes maiores dos que pagavam antes da crise. E o
Brasil foi um dos que mais se endividaram. Não tinha opção. O País já estava no
processo de abertura, mas o regime estava sem nenhuma preparação para enfrentar
o desemprego, que atingia milhões de brasileiros. Esse era o quadro.
A economia
solidária foi uma alternativa para enfrentar o desemprego, a fome e a miséria
que atingiram milhões de brasileiros?
Foi isso
mesmo. Quem tentou fazer isso de uma forma correta foi a Igreja, através da
Cáritas, que começou a organizar os desempregados para que eles voltassem a
viver, a ganhar. Isso acabou sendo o impulso inicial para a economia solidária
no Brasil. Portanto, a semente da economia solidária foi plantada nos anos 80
por uma ação extremamente adequada, e no momento certo, da Cáritas. Alguns anos
depois, o esforço da Cáritas foi secundado pelos sindicatos e pelas
universidades. A essa altura eu já estava envolvido.
Qual foi o
papel dos sindicatos, nesse início da economia solidária no Brasil?
Os
sindicatos viram que os trabalhadores de empresas que iam falir – e muitas
faliram nessa época – poderiam arrendar a massa falida, preservar a empresa e,
portanto, seus próprios empregos. Os primeiros casos causaram muita sensação:
fábricas sem patrões. Logo mais, isso se tornou um modelo. Surgiu a Anteag
(Associação de Empresas Recuperadas), que se especializou nisso, a partir do
Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).
Então, foi o início da economia solidária no Brasil. Os sindicatos apoiaram
seus trabalhadores na formação de cooperativas de trabalho.
Os
trabalhadores assumiram a direção dessas empresas falidas e as recuperaram?
Sim,
assumiram a direção das empresas. Eles passaram a ser trabalhadores sem patrão,
ou trabalhadores autoempregados coletivos ou sociais. Sempre associados.
E qual foi o
resultado disso?
Centenas de
empresas recuperadas no Brasil pelos seus próprios trabalhadores, mais de mil.
A maior da América Latina administrada por trabalhadores é a Uniforja
(Cooperativa Central de Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia),
que fica em Diadema.
Isso
mostrou, na prática, a capacidade de gestão do trabalhador, de administrar com
sucesso uma fábrica, coletivamente e sem patrões?
É preciso
lembrar que, do ponto de vista capitalista, o trabalhador é alguém que cumpre
tarefas. Ele não tem nenhuma participação na gestão, muito menos conhece os
problemas do negócio. Os donos da empresa só divulgam o que lhes parece
vantajoso. Portanto, os trabalhadores não têm aparentemente nenhuma capacidade
de gerir uma empresa. A realidade mostrou o contrário. As empresas recuperadas
pelos trabalhadores levam uma média de 2, 3 meses para voltar à plena
atividade. Não mais que isso. É surpreendente.
E quando
surgiu o conceito e o nome economia solidária?
A história é
mais o menos o seguinte: quem não se lembra do Betinho (Herbert José de Sousa)?
Sociólogo e ativista social, militante político que liderou o "Natal sem
Fome", mobilizou milhões e milhões de pessoas no Brasil. Isso também está
na história da economia solidária.
De que
forma?
Começou-se a
perceber que era preciso fazer alguma coisa direta contra o desemprego. Como a
campanha do Betinho avançou bem, tomamos a decisão de nos reunirmos nos anos
1990 (92 e 93) para lutar diretamente contra o desemprego, fomentando a
economia solidária, que ainda não tinha esse nome. Incentivando a
autoiniciativa econômica de trabalhadores associados.
Inclusive a
campanha do Betinho foi muito apoiada pela Igreja. Ele mesmo era um católico,
um cristão socialista. Militante da AP (Ação Popular, organização da esquerda
cristã). Bem, esse foi o passo decisivo para a criação das incubadoras e
cooperativas populares. Não surgiram imediatamente, mas não demorou muito. A
primeira cooperativa foi criada no Rio de Janeiro, creio que em 1994, e agiu
especificamente na Maré (Complexo da Maré). As incubadoras tecnológicas e
cooperativas populares foram decisivas para o desenvolvimento da economia
solidária no Brasil.
A origem
dessa primeira incubadora vem da situação trágica dos trabalhadores daquelas
favelas, que ficam ao redor do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). E junto ao
Instituto Oswaldo Cruz existe a Faculdade Nacional de Saúde Pública.
Basicamente, as pessoas nas favelas viviam do tráfico e das lutas contra os
traficantes... As balas passaram a voar e atingir os prédios da faculdade. Chegaram
a cogitar de tirar o Oswaldo do Cruz de lá, mas os próprios professores tomaram
a iniciativa maravilhosa: "Vamos pensar um pouco antes de fazer essa
transferência". Eles foram às favelas ver o que estava acontecendo e
descobriram que 80% dos favelados, dos chefes de família, não tinham trabalho.
Uma situação desesperadora e o tráfico era a única alternativa que lhes
restava.
Os
professores se reuniram e discutiram então o que fazer. O fato é que eles
acharam que cooperativa seria a solução. Então entraram em contato com os
vizinhos e sugeriram que formassem uma cooperativa de trabalho na própria
instituição. E até hoje, eu acho, é assim. Os homens passaram a ter uma
atividade e as mulheres também, em função daquele acordo.
E como o
senhor entra nessa história?
Havia
professores de Campinas, eu pela USP, mas não éramos muitos. Nós começamos a
estudar o assunto. Em 1995, fizemos a primeira reunião brasileira do que viria
a ser economia solidária, na PUC de São Paulo. A imprensa não dava nada disso,
como até hoje. O MST fazia economia solidária sem dar esse nome. O Gonçalo
Guimarães que até hoje dirige a mais antiga incubadora do Brasil, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, também. Vieram umas 30 pessoas e fui
surpreendente.
O MST já
havia conseguido assentar muita gente e em 1983 já havia decidido que em todo
assentamento haveria cooperativas. Eles foram a essa reunião na PUC contar essa
história. O MST tinha apoio da Cáritas, que o ajudou a desenvolver a
agroindústria nos assentamentos.
A Cáritas
brasileira faz parte de uma rede de Cáritas no mundo inteiro e ela recolheu
muitas contribuições das Cáritas europeias, dos Estados Unidos, porque a crise
lá já estava superada, mas aqui não. Eles tinham recursos e os usaram para
promover a economia solidária, que não tinha esse nome ainda. O nome surgiu
durante a campanha eleitoral de 1996 para a prefeitura de São Paulo. A
candidata do PT foi a Luiza Erundina, que acabou perdendo para o candidato do
Paulo Maluf, o Celso Pitta. Fui secretário de planejamento do governo dela
quando o desemprego atingiu o auge, naquele complicada política do
(ex-presidente Fernando) Collor. Havia 1,6 milhão de desempregados em São
Paulo. Sem o apoio dos empresários, o que sobrou dos nossos esforços foi uma
importante cooperativa de catadores de lixo, que até hoje existe. Vieram as
incubadoras, o MST, a CUT, ONGs. Eram movimentos sociais se organizando em
torno de um objetivo comum.
Fizemos essa
proposta de organizar os desempregados em cooperativas ao comitê do programa da
campanha da Luiza Erundina, dirigido pelo Aloizio Mercadante. Ele acatou e
perguntou: Singer como é você chama esse treco aí que você está propondo?
Respondi: nem pensei nisso. Aí ele me perguntou se não queria chamar de
economia solidária. Na hora percebi que era o melhor nome possível.
Até então
ninguém havia usado esse nome?
Quem começou
a escrever sobre economia solidária, mas com nome semelhante, economia de
solidariedade, foi o chileno Luis Razeto, professor de economia aposentado. Mas
só o conheci em 2008. Eu soube dele depois que a gente já tinha posto isso aí
em marcha. Quem me apresentou a ele foi o Cláudio Nascimento, militante na
época da ditadura, que foi exilado na Europa, e teve contato por lá com um
movimento como o da economia solidária, mas não com esse nome. Descobrimos mais
tarde que a economia solidária era praticada nos Estados Unidos, a partir do
microcrédito, e as universidades americanas tiveram um papel importante nisso.
Como a
economia solidária foi adotada de forma ampla pelo PT, a ponto de ganhar uma
secretaria própria, a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes)?
Em 1991, com
o desaparecimento da URSS, houve o desaparecimento do chamado socialismo
existente – mas que de socialismo não tinha mais nada. Acabou a ideia de
comunismo, e isso repercutiu no PT. O partido tinha de mudar e o socialismo era
a proposta do PT desde a sua fundação. Isso causou uma reação forte nas bases
operárias, camponesas etc. Elas não queriam nem ouvir falar em jogar fora o
socialismo. Tinham toda razão, esse socialismo fracassou, mas não quer dizer
que outras tentativas não possam ter sucesso.
Em meio à
chamada crise mundial do socialismo, o Lula deu mais uma vez prova do seu
gênio. Procurou o intelectual mais importante do PT, o professor Antonio
Candido de Souza, e pediu que ele organizasse uma discussão em profundidade
sobre o socialismo, porque a discussão poderia levar a uma divisão do PT. Isso
foi por volta de 93. Vários intelectuais participaram. A economia solidária não
era muito conhecida na época, mas organizamos debates inclusive sobre esse
tema. Depois, em debates sobre desemprego, o PT entendeu que a economia
solidária poderia trazer respostas para a questão e o partido assumiu o tema.
Foi depois de todos esses debates que Lula colocou a economia solidária no
programa dele.
Por que a
Senaes faz parte do Ministério do Trabalho e Emprego?
A Senaes foi
criada em 2003, quando o Lula tomou posse pela primeira vez. A Senaes faz parte
do Ministério do Trabalho e Emprego porque a economia solidária se reconhecia
como parte do movimento operário. O MTE é um ministério de proteção ao
trabalhador, portanto parceiro dos sindicatos e de todas as formas de
organização da classe trabalhadora. Nós somos uma secretaria dos movimentos
sociais. Uma das coisas que me deixam orgulhoso é que os principais movimentos
sociais do Brasil hoje estão na economia solidária. Não é que apoiem de fora,
fazem economia solidária. E as mulheres são a vanguarda da economia solidária,
no Brasil e em outros países.
A criação da
Senaes foi fundamental para que o País tivesse uma política pública de economia
solidária?
A economia
solidária só existe no Brasil todo, acredito, por causa da secretaria. E do
Fórum Brasileiro de Economia Solidária, nosso grande parceiro. Sem o Fórum não
tínhamos avançado. Ele foi criado junto com a secretaria, somos irmãos gêmeos.
Uma grande parte das políticas em economia solidária surgiu por meio do Fórum.
O próprio Fórum foi fomentando a criação de fóruns estaduais e hoje há ainda
centenas de fóruns municipais. Mais da metade dos estados têm hoje leis de
economia solidária, nós temos convênios com eles e com centenas de municípios.
O senhor vê
a economia solidária como solução para a miséria e também alternativa real à
economia capitalista?
Sim, é uma
alternativa. As raízes da economia solidária estão lá atrás, com Robert Owen,
considerado o pai do socialismo e um dos fundadores do cooperativismo, que foi
administrador de uma grande tecelagem. Ele reduziu as jornadas de trabalho (no
século 18), tirou as crianças das fábricas. Foi realmente um humanista e mestre
de Marx e Engels. Ele criou toda uma organização para defender o socialismo e
foi o primeiro grande líder da CUT da Grã-Bretanha, a primeira grande central
sindical do mundo. Os trabalhadores partidários de Owen inventaram a
autogestão. O princípio fundamental era a democracia, ninguém mandava em
ninguém. Todo mundo, homem, mulher, jovem, velho. Isso vale para as
cooperativas até hoje. No mundo, 1 bilhão de pessoas participam de
cooperativas, segundo dados da Aliança Cooperativa Internacional. E cooperativa
não é só cooperativa de trabalho. As cooperativas que têm mais sócios chamam-se
cooperativas de crédito e são bancos cooperativos. Nós temos mais de mil no
Brasil hoje.
A economia
solidária é uma volta às origens do socialismo? Uma outra economia, sem patrões
nem empregados, mas com trabalhadores solidários?
Sim, essa é
a minha tese e não é utopia. Está sendo praticada. Em pelo menos 200 países. No
Brasil, a característica da economia solidária é a presença de muitas
cooperativas. Na prática, nós somos um exemplo de que a economia solidária é
aplicação do cooperativismo.
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