80 ANOS DE GERALDO VANDRÉ: UMA HISTÓRIA CHEIA DE MISTÉRIOS
Foto: Vandré
ficou em segundo lugar, mas foi o preferido do público no 3º Festival de Música
Popular Brasileira, em 1968. Foto: Ediouro Publicações/Divulgação.
Hipóteses conturbadas e pouco explicadas da vida do compositor após o exílio atrapalham o conhecimento de sua obra.
Fonte:
Jornal 247.
"Minha
história é secundária", disse em maio um incomodado Geraldo Vandré ao
repórter Julio Maria, do jornal O Estado de S. Paulo, ao responder se o público
não mereceria conhecer sua trajetória artística. Era um comentário sobre
biografia não autorizada lançada um mês antes. Neste setembro, quando Geraldo
Pedrosa de Araújo Dias (seu nome de batismo) completa 80 anos, serão lançados
dois livros a seu respeito, de certa forma contestando a afirmação sobre a obra
de sua criação.
Corte para a
noite de 15 de agosto de 2014, no terminal rodoviário do Tietê, na zona norte
de São Paulo. Em um espaço do maior terminal da América do Sul, fica um piano.
Um anônimo senta, começa a tocar e logo junta uma pequena multidão em volta. Os
acordes são reconhecidos de imediato. A letra é longa, mas alguns arriscam-se a
cantar, conforme registro feito por um ouvinte que passava por ali. No final, o
intérprete ganha aplausos.
Em outra
escala, a cena se repete em 20 de junho último, na praça da República, centro
paulistano, na abertura da Virada Cultural. O maestro Rui Torneze, da Orquestra
Paulistana de Viola Caipira, anuncia o bis, para "cutucar o coração".
É a mesma composição tocada pelo pianista desconhecido, agora executada por
dezenas de violas – instrumento para a qual a música foi concebida – e
aplaudida com emoção ao final.
A música é
Disparada, parceria de Vandré com o violonista Theo de Barros, nascida durante
uma viagem a Catanduva, no interior paulista, em 1966. "Ele pegou a música
caipira, juntou Guimarães Rosa e fez uma coisa completamente nova. Como obra de
arte, Disparada talvez seja a música mais perfeita que o Brasil já
produziu", declarou, em depoimento, o jornalista e pesquisador Alberto
Helena Jr., um dos primeiros a ouvir a canção.
Foi o
primeiro e único caso de empate na chamada era dos festivais. Naquele 1966,
Disparada e A Banda, de Chico Buarque, foram declaradas vencedoras no concurso
da TV Record. Na verdade, A Banda havia vencido, mas o próprio Chico exigiu o
empate, por considerar – até hoje – que Disparada era melhor. A canção foi
defendida por Jair Rodrigues, em interpretação épica, mas que antes de
acontecer foi vista com certa desconfiança por Vandré, por considerar Jair
muito brincalhão. O primeiro encontro entre eles foi ríspido, mas depois de
vê-lo cantando o autor deu um abraço de "quebrar ossos" no
intérprete.
O ano de
1966 foi especial para Vandré. Ele venceu também o festival da TV Excelsior,
com Porta Estandarte, parceria com Fernando Lona, que, vindo da Bahia,
finalmente pôde com o prêmio alugar um apartamento. Além disso, o compositor
foi responsável pela trilha sonora de A Hora e Vez de Augusto Matraga, filme de
Roberto Santos com base em conto de Guimarães Rosa e representante do Brasil no
festival de Cannes.
Pouca coisa
se sabe efetivamente sobre a obra de Geraldo Vandré. Sua carreira de músico
profissional foi relativamente curta e prejudicada por um certo folclore
alimentado pelo silêncio. São apenas cinco LPs lançados, de 1964 a 1973, data
de seu retorno ao Brasil, após quatro anos e cinco meses de andanças pelo
exterior, em uma saída forçada pela repercussão de sua música mais conhecida,
Pra não Dizer que não Falei das Flores (Caminhando), de 1968. A partir daí,
prevaleceram as lendas. Para usar uma expressão do escritor Eric Nepomuceno, em
artigo recente no jornal Valor Econômico, o artista "alcançou píncaros de
luz para depois mergulhar numa névoa densa, carregada de perguntas sem resposta
e mistérios sem solução".
As perguntas
mais recorrentes são se Vandré foi mesmo torturado, se enlouqueceu. Ou por que
motivo nunca mais se apresentou no Brasil – seu último show foi do lado
paraguaio da fronteira, em 1982. A alguns artistas, como Jair Rodrigues e Ney
Matogrosso, chegou a falar em fazer apresentações "nas fronteiras",
que nunca aconteceram.
Vandré
estava no radar do regime, mas tortura física nunca houve. Talvez algo mais
grave tivesse acontecido se ficasse no Brasil. Depois da decretação do AI-5, em
13 de dezembro de 1968, ele permaneceu escondido – na casa de praia do pai de
sua namorada, no litoral sul paulista, e depois no apartamento de dona Aracy,
viúva de Guimarães Rosa, no Rio de Janeiro, perto do Forte de Copacabana. Os
soldados faziam manobras e Vandré, versos.
Durante o
carnaval de 1969, ele deixou o país disfarçado em direção ao Uruguai, e de lá
para o Chile. Partiu para a Europa, andou pelo Velho Continente, fixou-se na
França e, por fim, voltou ao Chile, de onde saiu dois meses antes do golpe que
em setembro de 1973 derrubou Salvador Allende e iniciou um período de terror.
Artistas
como Caetano Veloso e Chico Buarque, presos naquela época, dizem que nos
interrogatórios era possível perceber certa "prioridade" dos
militares em relação a Vandré. Alguns falavam mesmo em matá-lo, segundo o
compositor baiano. Famoso produtor de festivais, Solano Ribeiro acredita que
ele poderia ser morto se fosse preso no pós AI-5. Por ironia, seu último show
no Brasil como cantor profissional foi em 13 de dezembro, data do ato
institucional, em Anápolis (GO).
O motivo de
tanta raiva seriam alguns versos de Caminhando, que teriam sido especificamente
destinados aos militares, em um período que culminaria no período mais violento
da ditadura. A canção carimbou em Vandré o rótulo de "cantor de
protesto" ou antimilitarista. Mais de uma vez ele tentou explicar que a
música não era contra as Forças Armadas, mas contra uma situação política, um
momento da história brasileira. "Caminhando não é uma canção de guerra e
os versos 'nos quartéis se aprende a morrer pela pátria e viver sem razão' não
se refere somente a militares, mas é um modo de me exprimir para explicar todo
tipo de profissão que restringe as pessoas a um certo modo de vida. Aliás,
muitos militares concordaram com os versos", disse Vandré em uma
entrevista coletiva, no meio da polêmica, em 1968.
Muitos não
gostaram: no teatro Opinião, no Rio, onde se ele apresentava com o Quarteto
Livre no show Pra não Dizer que não Falei das Flores, houve um atentado a
bomba, que não deixou feridos. Os músicos haviam saído pouco antes para comer
uma pizza. Na mesma época, ele declarou ao repórter Arthur Poerner, no Jornal
do Brasil, um dos que o ajudaram a deixar o país: "A música é, portanto,
uma mensagem, uma informação, não um conselho. Mesmo porque o povo não precisa
de conselhos". O refrão é uma necessidade da canção, disse Vandré,
criticando quem tentava dissecar a sua como se fosse um comício, ou um tratado
de sociologia.
Em 2007, à
então estudante de Jornalismo Jeane Vidal, o autor chamaria sua obra mais
famosa de expiação. "Mais do que uma canção, Caminhando foi um
desnudamento. Um dizer-se tudo quando era proibido dizer-se quase tudo. Sem
ofensas e sem reivindicações. Um relato indeclinável para todos nós,
brasileiros, que ali nos reunimos num concurso de arte, sem paradigma e sem
igual, até hoje, para mim."
O concurso a
que Vandré se refere foi o Festival Internacional da Canção (FIC) da TV Globo.
Um representante do Brasil seria escolhido previamente para a fase
internacional. Ganhou Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. Uma música delicada,
que tratava do exílio, mas de forma sutil. O público queria a canção explícita
de Vandré e vaiou longamente a decisão dos jurados. Não era exatamente para
Tom, mas ficou marcada como a maior vaia que o compositor recebeu.
Burguês da
canção:
O médico
otorrino José Vandregíselo (do qual se origina o nome artístico) foi ligado ao
Partido Comunista, mas seu filho Geraldo nunca foi militante político. O
compositor chegou a se definir como um "profissional burguês da
canção". Vindo da Bossa Nova, como tantos, ele criou uma obra original, de
nítida preocupação social, a partir da primeira música de seu primeiro LP,
Menino das Laranjas (do futuro parceiro Theo de Barros), canção que se tornaria
sucesso inicial de Elis Regina. Vandré começou a chamar a atenção depois da
gravação de Samba em Prelúdio, em 1962, com a cantora Ana Lúcia – melodia de
Baden Powell, letra de Vinícius de Moraes.
Paraibano de
João Pessoa, formado em Direito no Rio de Janeiro e com a carreira musical
desenvolvida em São Paulo, ele não foi Bossa Nova – embora tenha bebido dessa
fonte, em parceria com autores como Carlos Lyra –, nem cantor de protesto.
Brigou com os tropicalistas e com a TV Record (na qual apresentava um programa)
e se definiu como nacionalista. Seu temperamento forte e o comportamento por
vezes imprevisível certamente contribuíram para os boatos sobre loucura.
Ele acabou
perseguido por causa de uma canção composta durante a Marcha dos 100 Mil,
realizada em junho de 1968, em protesto contra a violência do regime. Deixou
sua pátria e retornou em julho de 1973 após difíceis negociações com o governo
– ainda no Chile, chegou a ser internado para tratamentos psiquiátricos. Uma
condição para a permanência no Brasil foi uma falsa entrevista, forjada pelos
militares e exibida no Jornal Nacional, da Globo, um mês depois da real data de
seu retorno. Ali, Vandré renegou qualquer uso político de sua obra. Foi uma
espécie de retratação, como se dizia na época.
O silêncio
foi imposto e também assumido. Vandré deu entrevista em 1974 para o programa de
estreia de Flávio Cavalcanti, mas o censor viu "apologia" à figura do
artista e vetou o quadro. O Brasil também era outro. Tinha mudado durante os
anos de exílio, com a massificação da cultura. Além disso, o ex-servidor
público, exonerado por decreto fundamentado no AI-5, não gostou de ser
reconduzido ao funcionalismo com base na Lei da Anistia, "como se eu fosse
criminoso", conforme disse em 2010 ao jornalista Geneton Moraes Neto, da
GloboNews, em entrevista gravada no dia em que completava 75 anos (12 de
setembro).
Vandré
também reclamou da falta de imagens do FIC de 1968 e chegou a pedir a Geneton
que falasse com seus chefes. A Globo diz ter apenas alguns takes da fase
internacional. Da mesma forma, não há registro do Jornal Nacional de agosto de
1973 com a entrevista sobre a "volta" do cantor, nem imagens de sua
participação no festival da Record em 1967. Para a pesquisadora Dalva Silveira,
autora do livro A Vida não se Resume em Festivais, houve uma tentativa do
governo autoritário de "apagar Vandré e sua obra da memória coletiva
nacional", à medida que a imprensa não podia fazer referência ao seu nome,
nem ele podia se apresentar.
Lendas:
Mas o
compositor faz também sua crítica à sociedade que, de alguma forma, deu as
costas quando ele retornou, doente e fragilizado, e que talvez o preferisse
como mártir. E ajudou a alimentar a polêmica ao escrever, em 1985, um poema em
homenagem à Força Aérea Brasileira, chamado Fabiana.
Menos conhecida, Marina
Marinheira fez referência a outra das forças armadas, e foi interpretada em
show por Ney Matogrosso, em 1980. Vandré não deixou que ele gravasse.
Um livro
pode fazer com que as lendas fiquem em segundo plano e as canções tenham mais
destaque, como se deveria esperar de um artista. Além das duas mais conhecidas,
Vandré é autor de composições como Canção Nordestina, Pequeno Concerto que
virou Canção, Tristeza de Amar, Aroeira, Cantiga Brava, Maria Memória da Minha
Canção, João e Maria, Fica Mal com Deus, De América e Desacordonar, feita no
período do Chile, quando o artista percorreu o país para conhecer a experiência
de reforma agrária. Ou Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve, composta com
Manduka, filho do poeta Thiago de Mello, e vencedora do festival de Agua Dulce,
realizado no Peru em 1972.
Vandré
também foi o primeiro a defender uma música de Chico Buarque em um festival
(Sonho de um Carnaval, na extinta TV Excelsior, em 1965). E ajudou a revelar
músicos até hoje admirados, inclusive internacionalmente. Theo de Barros,
Heraldo do Monte, Airto Moreira e Hermeto Pascoal formavam o Quarteto Novo.
Bhering, Hilton Acioli e Marconi eram o Trio Marayá. O último grupo a
acompanhar o cantor foi o Quarteto Livre, com Nelson Ângelo, Franklin da
Flauta, Geraldo Azevedo e Naná Vasconcelos.
Assim, há
muito o que se explorar e descobrir no universo musical criado por Vandré. Sem
se preocupar tanto com o festival que representou seu auge e o fim, ao mesmo
tempo. Até hoje fala-se em uma possível pressão militar para que Caminhando não
ganhasse em 1968. Algo desnecessário para demonstrar a importância do artista
na música brasileira, como observou, em entrevista, Leon Cakoff, famoso pela
criação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – e que em 1968, aos 20
anos, bancava os estudos com o trabalho de assistente de Vandré. Com uma
comparação cinematográfica, ele mostra que nem sempre é preciso ganhar para ser
eterno.
"A
história reserva às peças desse tabuleiro as suas posições corretas, não
adianta você mexer. Tanto filme ganha Festival de Cannes e cai no esquecimento
em seguida... E tantos filmes que não ganham prêmio nenhum e ficam eternos na
memória de todos os cinéfilos", disse Leon em 2009. "Foi uma
radiografia do momento, de uma época. Qual a foto deste momento que a gente
está vivendo hoje? O que traduz este momento? Naquele momento, traduzimos com
Caminhando."
E há muitas
traduções possíveis. Anos atrás, Vandré usou a mesma palavra dita recentemente
ao repórter do Estadão para expor o que pensa sobre a sociedade: para ela, a
beleza tem função "secundária" – e quem a procura, também. Mas ele
mesmo concluía que sem beleza não existe "o homem feliz". Em
Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, onde tem vivido nos últimos
tempos e onde sua mãe morava (dona Marta morreu em 2011; "seu"José,
em 1986), possivelmente é disso que ele se ocupa, fazendo canções e versos em
silêncio.
Biografia é
história:
O repórter
Vitor Nuzzi lançou em abril o livro Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida,
de forma independente e com tiragem limitada (100 exemplares). Primeira
biografia do compositor, à qual o autor se dedicou por quase uma década, o
livro está prestes a ser relançado, agora pela editora Kuarup.
Em 10 de
junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma ação direta de
inconstitucionalidade e pôs fim a uma espera de três anos, ao decidir que a
publicação de biografias não exige autorização prévia. Todos os ministros
acompanharam o voto da relatora, Cármen Lúcia. "Não é proibindo,
recolhendo obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e
amordaçando a história que se consegue cumprir a Constituição", afirmou a
juíza, acrescentando que cabe à Justiça reparar eventuais abusos.
"O mais
é censura, e censura é uma forma de cala-boca."
A polêmica é
antiga, mas ganhou força em 2007, quando Roberto Carlos foi à Justiça para
recolher livro escrito pelo biógrafo e professor Paulo Cesar de Araújo. A
editora retirou o livro de circulação. Araújo promete relançá-lo, e até já
assinou contrato com uma editora. Biografias são livros de história, e ninguém
é dono da história, diz o escritor (leia entrevista publicada na edição 95).
O escritor
Jorge Fernando dos Santos também lança uma biografia em setembro: Geraldo
Vandré – O Homem que disse Não, pela Geração Editorial.
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