Arte entre fronteiras Críticos e psicanalistas discutem os limites e os estigmas que envolvem criação artística e loucura




Recorrentes na história da arte, as relações entre criação e loucura voltam à tona a partir de duas exposições que se propõem a pensar a obra de artistas diagnosticados como esquizofrênicos para além de sua condição mental: a homenagem da Bienal de São Paulo — que será aberta ao público na sexta-feira — a Arthur Bispo do Rosário (1909 ou 1911-1989), que foi interno da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, por 50 anos, com idas e vindas da instituição; e a mostra “Raphael e Emygdio: Dois modernos no Engenho de Dentro”, que, em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio, busca inserir Raphael Domingues (1912-1979) e Emygdio de Barros (1895-1986) na arte moderna brasileira. 

Ao olhar para a obra de arte em detrimento da biografia de seus artistas, ambas as exposições também põem em questão até que ponto faz sentido afastar a vida e as circunstâncias em que esses artistas produziram. No IMS, os curadores Heloisa Espada e Rodrigo Naves desejavam destacar a obra de Raphael e Emygdio do contexto em que ela geralmente é vista: o tratamento no ateliê de arte do Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, criado pela psiquiatra Nise da Silveira em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro. As pinturas de Emygdio e os desenhos de Raphael são exibidos num só espaço, e a única mediação com o espectador é um pequeno texto.
 

Essa perspectiva não impediu, porém, que os curadores reservassem uma sala, fora da exposição, para relatar o pioneirismo de Nise na psiquiatria, que deu condições à criação dos dois artistas e à melhora terapêutica de tantos internos — o “relato” em fotos e textos foi organizado por Luiz Carlos Mello, diretor do Museu de Imagens do Inconsciente, que reúne milhares de trabalhos de pacientes do Engenho de Dentro. Já na Bienal de SP, há uma intenção declarada de não tratar da condição mental de Bispo do Rosário, cujas obras formarão o núcleo da maior mostra de arte contemporânea do país, que terá outros 110 artistas. O sinal mais evidente dessa posição é o silêncio do curador da bienal, Luis Pérez-Oramas, que não quis falar com O GLOBO sobre o tema. Já Wilson Lázaro, curador do Museu Bispo do Rosário — que funciona no edifício da antiga Colônia Juliano Moreira — e responsável pela montagem do núcleo do artista no Pavilhão da Bienal, não nega que Bispo tinha problemas mentais, mas sustenta que essa avaliação prejudica a apreciação de sua obra: 

— Isso diminui a obra dele. Não quer dizer que ele não tenha sido louco, ele tinha surtos. Mas ele não criou a obra a partir da loucura. A obra é vista como um sintoma de doença, mas ela é um sintoma de saúde. O bom desta bienal é mostrar o Bispo fora da questão da loucura e da relação com a arte contemporânea. O Bispo é visto apenas como um criador — diz Lázaro, que costuma frisar que Bispo não tomava remédios e tinha autonomia, e também hesitou em falar sobre o tema. 

A primeira inserção de Bispo no mundo da arte foi na mostra “À margem da vida”, organizada pelo crítico de arte Frederico Morais no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, em 1982, com obras de artistas marginalizados. Em 1989, três meses depois da morte de Bispo, o crítico realizou a primeira exposição individual do artista no Parque Lage; em 1991, sua primeira mostra internacional, em Estocolmo; e, em 1993, fez outra no MAM. Quase duas décadas depois, Morais prepara o livro “Arthur Bispo do Rosário: Arte além da loucura”, que deve ser lançado até o fim do ano, com edição da Livre Galeria e da Nau, e financiamento da Secretaria municipal de Cultura do Rio. Apesar de sempre ter tratado Bispo como um artista, ele acredita que falar da condição de interno num hospital psiquiátrico não o diminui; pelo contrário, mostra sua força. 

— O Bispo não tinha nada a favor dele. Vivia num ambiente cruel, com mais de 800 presos, e ainda assim definiu sua identidade e produziu tudo isso — afirma. — Todo meu esforço foi de inseri-lo na história da arte brasileira. Há críticos que dizem que ele não sabia de nada, não fazia parte do circuito de arte... Isso é um equívoco. A obra se torna independente, se relaciona com o mundo da cultura, como uma criança que você põe no mundo. Mas, para muita gente, fazer uma obra de arte que contenha conceito, ideia, não é coisa para louco. 


Relações entre vida e obra


O livro de Morais está sendo organizado pela psicanalista e curadora Flavia Corpas, que desde 2005 estuda vida e obra de Bispo do Rosário, tema de seu doutorado em Psicologia Clínica, em andamento na PUC-Rio. Para Flavia, sócia da editora e galeria de arte Livre Galeria, é importante refletir sobre a autonomia da obra, mas isso não implica qualquer dicotomia entre um Bispo são e criador e um Bispo doente. A psicanalista analisa como o delírio se relaciona com o fazer das obras — não por ser uma abertura à criatividade, mas por constituir um modo de o louco buscar seu lugar no mundo. 

— Existe um discurso recente de negar a loucura do Bispo para sustentar a obra de arte, como se ela dependesse de uma intencionalidade — critica. — O delírio não é uma destruição, é uma tentativa de o sujeito caber no mundo, de cura. O fazer do Bispo engendra outra forma de vida para ele. Em outro momento, a obra ganha autonomia, e o delírio passa a ser secundário. Mas não é para negar. É preciso, como diz Lacan, escutar essas pessoas ao pé da letra. 

Um dos primeiros livros surgidos sobre Bispo, de 1996, foi a biografia “Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto” (Rocco), vencedor do Prêmio Jabuti, da escritora e jornalista Luciana Hidalgo. Para Luciana, “a interdição da análise da vida do autor está um pouco ultrapassada”, e não faz sentido quando se reflete sobre uma obra que, criada dentro hospital psiquiátrico, acaba recorrentemente se referindo a ele — como nas acumulações de objetos do local, como talheres e botas dos internos, ou no famoso fio azul claro com que, desfiado do uniforme do hospital, Bispo bordava suas obras. 

Depois da biografia de Luciana, vieram muitos outros livros, estudos, pesquisas, filmes e desfiles de escola de samba sobre Bispo. Para Flavia e Morais, grande parte desse discurso é uma repetição sem pesquisa, com a reprodução de fontes secundárias — o crítico defende uma pausa nas mostras do artista, para que se retorne a um olhar mais atento sobre sua obra. No caso de Raphael e Emygdio, o problema não é de excesso, mas de ausência: pouco se refletiu sobre a singularidade de artistas que costumam ser reunidos na categoria de “clientes” da Dra. Nise, como a médica gostava de chamá-los. 

O crítico Rodrigo Naves faz uma comparação: Bispo realizou obras mais próximas da arte contemporânea, era falante e muito presente nas relações dentro do manicômio; já Emygdio era tímido, recluso, o que motivou leituras problemáticas sobre a potência de sua obra: “ao pintor restou uma espécie de loucura vaga, uma doença que o afastava da razão e da vontade, sem chegar, porém, a envolvê-lo num processo criativo vertiginoso”, afirma Naves, no texto do catálogo da mostra. 

— Na época em que esses artistas criaram houve apoio do Mário Pedrosa, mais tarde de Ferreira Gullar e Sergio Milliet, mas, por razões difíceis de equacionar, não sei se por preconceito, Emygdio e Raphael não entraram para nossa história da arte — diz Naves. — O que me parece discutível é afirmar que a arte sempre envolve loucura ou que se houve aproximação com a loucura não há arte. As oficinas foram uma ajuda no processo de estruturação dos internos. Que tenha dado em boa arte, ótimo. 

Naves remete ao romantismo a associação entre inspiração e “excessos e desequilíbrios”. Já Heloisa Espada destaca o interesse da arte moderna pela criação de loucos e crianças, como traço de espontaneidade e pureza — foi nesse sentido que o artista francês Jean Dubuffet criou a expressão “arte bruta”, a arte supostamente livre de padrões, como a criada pelos loucos. 

— Nise queria entender histórias de vida por meio das imagens. É uma outra beleza da coisa, e é natural que essa interpretação tenha ficado mais evidente . Como historiadora da arte, não ousaria entrar nessa seara, mas é quase impossível não contextualizar essas obras. Ao tratar de qualquer artista você pesquisa sua influência, com quem ele estudou — sustenta Heloisa. 

Raphael e Emygdio “estudaram” com os artistas Almir Mavignier e Abraham Palatnik, na época apenas monitores do ateliê de artes de Nise, e criaram obras singulares. Naves destaca a complexidade das cores de Emygdio. Heloisa, o extremo controle que Rafael tinha dos desenhos, de linhas contínuas, com a precisão que não se costuma esperar de um esquizofrênico. 

— A pulsão da pintura no Emygdio e do desenho no Raphael é sensacional — diz o crítico de arte Ronaldo Brito. — Isso não invalida uma leitura psíquica, mas hoje essa obra está entregue, é matéria simbólica para nós. Como diria (o surrealista) Breton, temos que exercer um olhar selvagem sobre elas. O GLOBO

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