ENTREVISTA DA INTELECTUAL, PSICÓLOGA, PROFESSORA, PESQUISADORA, ESCRITORA E ATIVISTA JAQUELINE GOMES DE JESUS EM COMEMORAÇÃO AO DIA DA MULHER NEGRA LATINA-AMERICANA E CARIBENHA
Em
comemoração ao Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha é
com muita alegria que publicamos entrevista com a intelectual, psicóloga,
professora, pesquisadora, escritora e ativista Jaqueline Gomes de Jesus, cujo
trabalho é dedicado à inserção da população negra no mercado de trabalho e ao
universo da comunidade trans*. Seus objetos de estudo versam sobre a psicologia
social, a gestão da diversidade e os movimentos sociais, sempre relacionandos à
questões de gênero, de orientação sexual, de identidade de gênero e de
cor/etnia.
Uma das
jovens griôs da Diáspora, por seu trabalho e por sua produção intelectual,
Jaqueline Gomes de Jesus é vencedora do Prêmio Jabuti de 2012 como co-autora de
Psicologia Social: Principais Temas e Vertentes, onde discute em dois capítulos
sobre estereótipos, preconceitos e discriminação e sobre atração e repulsa
interpessoal. Integra nossa lista das 25 mulheres negras mais influentes da internet braisleira e
assina o blogueJaqueline J, além de ser autora
do Blogueiras Negras.
Jaqueline
Gomes de Jesus, arquivo pessoal.
Blogueiras
Negras – O Festival Latinidades traz em sua edição de 2014 as Griôs da Diáspora
como ponto de partida para o diálogo, valorizando a importância das mulheres
negras como detentoras de saberes essenciais à superação das desigualdades numa
sociedade ainda machista, sexista, racista, transfóbica, classista. Qual é,a
contribuição dessas personagens em sua trajetória pessoal, sobretudo agora que
você contribui para a permanência dessa tradição através do seu trabalho, sendo
uma griô que propõe a alternativas ao que está posto?
Jaqueline
Gomes de Jesus – Primeiramente, agradeço com humildade por ser considerada uma
repercussora dos pensamentos e das práticas de mulheres negras anônimas e
reconhecidas que, ao longo de séculos, apesar de todos os obstáculos colocados
pelo sexismo, pelo machismo, pela transfobia, pela homofobia, pelo classismo,
pelo capacitismo e outras lógicas de exclusão, têm construído sentidos de
humanidade e de cidadania que nossas instituições e regimes políticos
democráticos ainda falham em alcançar plenamente.
Aos ancestrais
e às griôs da Diáspora Negra devo o meu senso pessoal como ser humano integral,
como mulher possível e protagonista de si, a eles e elas devo a minha vida. Na
luta incansável das mulheres negras encontro a energia e a fé para seguir
lutando pela superação da miríade de preconceitos, discriminações e
desigualdades que vigoram em nossa sociedade, a partir de um trabalho de
reflexão cotidiano e incessante.
Blogueiras
Negras - A transmissão de nossas tradições por meio da oralidade é um dos
maiores patrimônios da população afrobrasileira. Por outro lado, temos nos
tornado personas cada vez mais virtuais, sem que haja necessariamente a
conversão dessa enorme rede virtual de pessoas em relacionamentos presenciais.
Você acredita que a cultura digital tem ameaçado ou contribuído para que a
oralidade seja entendida como um acervo indispensável à nossa humanidade?
Jaqueline
Gomes de Jesus - Tenho uma visão, digamos, “otimista” sobre esse processo
de virtualização dos relacionamentos. Por um lado, corremos o risco de nos
tornarmos turistas que se divertem com a fauna humana e suas experiências à
distância, na segurança da rede mundial de computadores, como se nos
admirássemos – ou nos assustássemos – com golfinhos – ou tubarões – de nós
separados por um vidro (ou uma tela). Isso prejudica o princípio da
solidariedade e esvazia o significado da reflexão e da participação política
porque, de certa forma, desumaniza um pouco o outro.
Entretanto,
por outro lado, quando observo a intensa troca de informações e de relatos
pessoais entre pessoas oriundas de grupos sociais historicamente discriminados,
propiciada pelo acesso cada vez maior à internet, entendo que a oralidade, como
elemento crucial da humanidade enquanto contadora de histórias, permanece,
porém com outra roupagem, aliás com a oportunidade para ir além dos guetos e
dos agrupamentos fechados, por vezes quase esotéricos, para alcançar um público
maior que em outras épocas, por não ser mais tão limitada pela centralidade dos
meios de comunicação nas mãos de grupos oligárquicos e devedores de elites
desconectadas das demandas das multidões.
Nesse
sentido, os movimentos sociais têm se enriquecido quando abraçam as Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação, chamadas NTICs. Mais que alcançarem um
público maior, suas mensagem se pluralizam, encontram novos significados e
novos lugares de fala, o que, a meu ver, contribui para a livre expressão de
pessoas e movimentos que, em outras circunstâncias, inclusive presenciais, não
encontram espaços – inclusive presenciais – para publicizarem seus pensamentos
e experiências, em especial quando eles são divergentes da coletividade
dominante e, geralmente, opressora.
Todas
estamos estarrecidas com o desaparecimento de Elizabeth Gomes da Silva,
companheira de pedreiro Amarildo de Souza. A notícia tem sido publicizada de
forma descontextualizada, demonstrando a resistência da grande mídia em
discutir o racismo como violência de caráter também institucional .
Como
consequência, temos a naturalização e invisibilidade das mais diversas
violências sofridas ao mesmo tempo em que não se discute o racismo como um
vetor de adoecimento psíquico da população negra. Quais tem sido as
contribuições da Psicologia no entendimento de que a violência racial influi
diretamente na saúde emocional de pessoas negras?
Felizmente a
Beth foi encontrada, está tentando se recuperar de um processo depressivo. Esse
episódio reitera exatamente a lógica predominante, nos diversos produtos
jornalísticos predominantes, de minimização dos efeitos estruturais do racismo
e de criminalização de movimentos sociais, a partir de um discurso de
conformidade com a ordem estabelecida que naturaliza e reproduz alienações,
como a de que a ordem social estaria sendo indesejavelmente perturbada pelos
revoltosos.
Ora, essa é
uma inversão de causalidade conveniente para se culpabilizar as vítimas da
marginalização, da exclusão e da apartação.
Não se pode
culpar os rebeldes pelos problemas sociais, pois são os problemas sociais que
geram os revoltosos!
A saúde, de forma geral, ainda é vista como um fenômeno meramente biológico,
sem relações com o mundo psicossocial. Psicólogas e psicólogos têm questionado
esse posicionamento que limita a compreensão sobre como as relações sociais e
os processos de subjetivação podem ser vetores de adoecimento psíquico,
especialmente quando falamos de uma população historicamente discriminada em
uma sociedade racista, no que se inserem as pessoas negras.
Pessoalmente,
tenho me focado na discussão sobre como a subcidadania é construída
socialmente, particularmente por meio de relações degradadas nesse nosso
mercado de trabalho tardiamente globalizado, e perniciosamente competitivo, o
qual tem raízes profundas nos séculos de escravidão que marcaram a construção
das nossas imagens e discursos sobre o humano. Isso não é assunto apenas para
historiadores, sociólogos ou jornalistas, como já me responderam em um parecer
de artigo científico, mas também para psicólogos.
A
Psicologia, como ciência e profissão, enfrenta o desafio de superar a visão
eurocêntrica e colonial que ainda silencia acerca do sofrimento vivido pelas
negras e negros neste país, seja no âmbito individual quanto no coletivo.
Entendo que a Psicologia Social, em particular, tem apresentado contribuições
relevantes nesse sentido, nos frequentes estudos sobre estereótipos,
preconceito e discriminação de cunho racial, e nos mais raros sobre processos
de branqueamento e branquitude, ainda que estejamos distantes de uma Psicologia
– como conjunto de saberes-fazeres unificados que reconheça os movimentos
sociais e intelectuais pulsantes em produção de conhecimentos, para além dos
campos acadêmicos, como os feministas contemporâneos, os antirracistas, os
movimentos por terra e moradia, entre outros – que realmente poderíamos chamar
de “descolonial”.
Blogueiras
Negras - O direito à identidade tem sido historicamente negada à população
negra. Somos aqueles que não existem, podemos ser tratados apenas como
existências descartáveis tanto pelo estado, quanto pelo mercado de trabalho.
Qual é a importância das políticas afirmativas, notadamente das cotas raciais,
na efetiva reversão dessa percepção e modos de agir que ainda nos tratam como
muito menos do que gente?
Jaqueline
Gomes de Jesus - As mulheres negras na Diáspora têm, há muito tempo,
desenvolvido contradiscursos que buscam colocar as pessoas negras como sujeitos
de sua construção identitária, para além das restrições postas pelos estigmas
postos pela sociedade racista que as invisibiliza como seres descartáveis, como
você mesma apontou, como menos humanas que as pessoas brancas, o que repercute
negativamente em todos os aspectos da vida social.
As políticas
afirmativas objetivam enfrentar, de maneira sistêmica, as tendências históricas
de subalternização de determinadas populações, em um contexto de desigualdades,
particularmente nos âmbitos da educação e do trabalho, e envolvem algum nível
de intervenção do Estado.
Considero
que ações afirmativas são mais efetivas do que discursos que enfatizam a
igualdade de oportunidades, tendo em vista a finalidade de se enfrentar as discriminações
à capacitação de integrantes de grupos discriminados para se tornarem
competitivos em quaisquer campos, além disso, elas contribuem para a melhoria
pontual das condições de grupos desprivilegiados, possibilitando a formação,
por exemplo, de alguma elite negra.
A inserção
massiva de pessoas negras em instituições de ensino superior e no mercado de
trabalho, por meio das cotas raciais, que precisam ser ampliadas, é importante
não apenas porque tem repercussão numérica, mas também porque auxilia na
mudança dos modos de agir socialmente esperados frente a pessoas negras e das
percepções sociais acerca da população afrobrasileira.
Blogueiras
Negras - A universidade ainda é um espaço cujo acesso é determinado em
grande parte pelas desigualdades promovidas pelo racismo em suas mais diversas
manifestações. Ainda assim, estamos conseguindo com grande dificuldade mudar
esse panorama, sobretudo em função das cotas. Entretanto, uma vez no ambiente
universitário, o cotista negro enfrenta mais uma vez um ambiente hostil à sua
presença. Quais são os principais desafios para que a universidade se torne de
fato uma espaço de acolhimento do negro como ser intelectual à partir de uma a
perspectiva psicossocial?
Jaqueline
Gomes de Jesus - Fala-se tanto nas universidades como produtoras de saber,
mas quantos dos pensadores contemporâneos relevantes para o debate sobre o
presente e o futuro do Brasil estão organicamente ligados às universidades,
desenvolvendo reflexões pertinentes a partir delas? Não muitos. Isso dá o que
pensar sobre as práticas nas instituições de ensino superior em nosso país, que
algumas pessoas, como eu, esperam que sejam mais do que produtoras de títulos
acadêmicos, que superem o mito nacional de que a educação serve para gerar
status, representado por diplomas e cargos, e não para gerar pensamento
criativo, livre de amarras administrativas, representado por novas proposições
sobre o real.
Os negros,
excluídos dos espaços universitários brasileiros ao longo do século XX, veem-se
hoje diante de um espaço que os recebe massivamente – como alunos – por meio de
ações afirmativas, mas que não superou uma tradição masculinista e etnocêntrica
de teorização e instrumentalização, de acomodação nos cargos docentes e de
pesquisa que não se submeta a práticas de privilégio a integrantes de grupos de
interesse intelectual, dos quais as pessoas negras estão apartadas.
Em uma
perspectiva psicossocial, e provavelmente também política, ainda não há
empoderamento de pessoas negras na sociedade de forma geral, no sentido de uma
agregação coletiva de recursos em comparação com os demais integrantes das
organizações, oriundos de outros grupos sociais, o que se reflete no microcosmo
das universidades. Isso se expressa objetivamente na ínfima conquista de cargos
oficiais, nessas instituições, por negras e negros, que as habilite a desafiar
a hierarquia étnico-social posta.
Observe as trajetórias de ascensão social de negras e negros com formação
universitária, e note que elas invariavelmente se concentram, com obstáculos,
fora das universidades, o que pareceria normal, se a proporção não fosse
condizente com a de pessoas brancas que conseguem desenvolver seus processos
identitários e de construção profissional dentro ou ao lado das universidades.
Por isso
tudo precisamos ser mais críticos quando ouvimos pessoas que enchem a boca para
se dizerem herdeiras do espírito universitário, mas que em suas universidades
compartimentalizam o saber científico e fazem de seus cargos capitanias quase
que hereditárias.
Em tal
conjuntura, os intelectuais negros não serão encontrados em peso lecionando ou
pesquisando em instituições de ensino superior, porque esse campo não nos é
facilmente aberto, ou melhor, é arduamente dificultado.
Felizmente,
o saber social continua vivo e incessante em outros espaços, especialmente nos
espaços virtuais de discussão, nos movimentos sociais autônomos e nos
organizados, proliferando conhecimentos que de fato nos permitem pensar este
Brasil que vemos por aí, e quiçá transformá-lo.
Blogueiras
Negras - Costuma-se pensar a inserção da pessoa negra na universidade como
uma via de mão única, como se o único a ser beneficiado fosse apenas o
estudante e não a própria instituição. Mais uma vez são desconsiderados os
saberes de toda uma população, que nada teria a oferecer em contrapartida. Qual
é a contribuição gestão da diversidade cultural no entendimento de que a
presença do estudante negro gera benefícios para toda a sociedade e sobretudo
para as instituições que o acolhem?
Jaqueline
Gomes de Jesus - No que tange à presença negra nas universidades, ela é
significativa não apenas para o indivíduo e seus familiares, mas igualmente
para a comunidade que o cerca e toda a população negra.
É importante
disseminar a compreensão de que a inclusão de grupos sociais diferentes, em um
espaço antes homogêneo, não se constitui apenas como justiça social, mas também
como vantagem comparativa na constituição de equipes que apresentam resultados
mais criativos porque são diversas. É relevante estimular a comunidade para a
valorização dos novos atores institucionais que compõem a sua diversidade
interna.
O objetivo
da gestão da diversidade, nesse ambiente diverso, é o de trabalhar pela
inclusão de pessoas com diferentes atributos sociais, a fim de que a
organização as respeite e as agregue a si como atores institucionais tão dignos
quanto os já estabelecidos. Isso é estratégico para que as instituições
acolhedoras se beneficiem ao máximo com a presença das novas pessoas, que não
será apenas simbólica, mas significativa para transformar seus pontos de vista
e visões de mundo, para enriquecê-la como integrante de uma sociedade
multicultural que a cerca e sustenta.
Blogueiras
Negras - As mulheres negras são a maioria da “geração nem nem”, aqueles
que não trabalham e nem estudam, somando 2,2 milhões ou, 41,5% desse grupo.
Quais são as demandas específicas desse grupo em relação aos homens negros e em
relação à população branca que se encontra nessa mesma situação de
vulnerabilidade?
Jaqueline
Gomes de Jesus - Historicamente, o trabalho das mulheres negras tem sido o
sustento de várias gerações negras, não necessariamente relacionadas por
vínculos sanguíneos, e muito mais por relações comunitárias, de adoção, de
cuidado, de ensino (basta reconhecermos o trabalho das Mães de Santo como
educadoras), contrariando a lógica tradicional do homem/pai como provedor
econômico dos lares, e demonstrando a fragilidade conceitual do papel
biologicista e heteronormativo atribuído às mulheres, pela política sexual
racista e eurocêntrica, como mães. As mulheres negras enfrentam as opressões
sistêmicas exercendo a maternidade, preponderantemente, como uma liderança
social, comunitária, subvertendo a própria ideia essencialista de maternidade.
Esse mesmo
trabalho, apesar de profundamente marginalizado, tem sido igualmente
indispensável para se repensar a organização e movimentos de libertação de
pessoas negras, desde o nível micro ao macro.
Como os
dados demográficos demonstram, ser mulher e negra no Brasil constitui uma
exposição a desigualdades de gênero e étnico-raciais às quais homens brancos ou
negros, e mesmo mulheres brancas, não estão submetidas com a mesma gravidade
que as mulheres negras. Quando nos referimos a educação e trabalho, essas
diferenças ficam gritantes.
Blogueiras
Negras - Como a maioria da chamada Geração Nem Nem não poderia ser de
pessoas negras, principalmente as mulheres, neste país onde o racismo e o
machismo são elementos transversais das relações intergrupais e interpessoais?
Jaqueline
Gomes de Jesus - As mulheres negras que se ocupam nos cargos mais
desvalorizados da sociedade, recebendo os menores salários, tem poucas
oportunidades e pouco tempo para se aprimorarem, em termos educacionais (lembre
que a maioria da população negra, constituinte predominante da população pobre
brasileira, encontra espaço nas instituições de ensino superior privadas, e não
nas públicas), para tentarem alçar melhores posições no mercado de trabalho, e
mesmo quando são capacitadas e qualificadas, sofrem com a discriminação quando
competem com pessoas brancas.
O que
entendo é que as políticas públicas de emprego e renda erram ao não
reconhecerem o potencial da mão de obra das pessoas negras, especialmente as
mulheres negras, na transformação da economia.
Aprofundar
ações de escolarização, tais como o financiamento público para acesso a
instituições de ensino superior privadas, e não apenas públicas, é algo
indispensável, que deve ser realizado conjuntamente com iniciativas, de
inclusão qualificada no mercado de trabalho, que não se restrinjam ao setor
público.
Blogueiras
Negras - As experiências da adoção de cotas tem se mostrado exitosas na
formação de profissionais negros extremamente bem qualificados, tanto quanto
seus pares de outras populações. Ainda assim, o mercado de trabalho ainda
mostra resistência na contratação de profissionais afrobrasileiros, cotistas ou
não. Em muitos casos não é possível comprovar a discriminação, que costuma acontecer
durante o período de entrevistas. A exemplo do trabalho desenvolvido no Centro
de Convivência Negra da Universidade de Brasília, podemos pensar na
implementação de iniciativas que apoiem profissionais negros em sua inserção no
mercado de trabalho?
Jaqueline
Gomes de Jesus - Sim. Essas iniciativas são urgentes, especialmente
imprescindíveis para a construção de uma consciência, no mundo do trabalho
brasileiro, marcado pelo racismo e por desigualdades de cunho etnicorracial,
para que sejam desenvolvidas formas de enfrentamento coletivo, no contexto
laboral, à exclusão de pessoas negras.
Para além de
cotas, entre as ações afirmativas que demonstraram bons resultados, fora do
Brasil, e que poderiam ser adotadas, especialmente quando nos referimos ao contexto
privado, são o estabelecimento de estímulos econômicos, como a redução de
impostos ou taxas, para empresas que incluem pessoas negras, e outros
representantes de grupos discriminados, em cargos de direção; e também a
obrigação legal da representatividade de pessoas oriundas de grupos
discriminados em peças televisivas e outras de natureza publicitária.
Blogueiras
Negras - Em Identidade de gênero e políticas de afirmação
identitária é feita a denuncia de como as pessoas trans* ainda
enfrentam uma realidade de “exclusão extrema, sem acesso a direitos civis
básicos, sequer ao reconhecimento da identidade. São cidadãs e cidadãos que
ainda têm de lutar muito para terem garantidos os seus direitos fundamentais.”
Quais seriam desafios que se colocam à superação desse panorama, especialmente
se tivermos em mente a inserção de transexuais e travestis negras no mercado de
trabalho?
Jaqueline
Gomes de Jesus - As pessoas trans, de forma geral, não são consideradas de
fato como pessoas, ou seres humanos, neste país, vivendo portanto uma
experiência de exclusão próxima à das pessoas negras, que ainda não são
tratadas de fato como cidadãs. Quando falamos então de pessoas trans negras, o
nível de desumanização alcança o do extermínio, seja ele psicológico, social ou
físico, aliado à invisibilidade social.
Creio que a
inserção de pessoas trans negras no mercado de trabalho deva partir,
primeiramente, do reconhecimento de sua identidade de gênero, isto é, as
pessoas trans precisam ser reconhecidas pelo nome e gênero com relação aos
quais se identificam. Isso acarreta um enorme desafio social e legal, que está
na pauta dos movimentos sociais trans, mas que precisa ser melhor abraçado
pelos grupos organizados.
Apesar de se
reconhecer a exclusão das pessoas trans brasileiras no mercado de trabalho, não
se conhecem em profundidade a sua formação educacional, experiências
profissionais e interesses profissionais, para que se tenha uma ideia de sua
heterogeneidade e se planeje, com precisão, intervenções educacionais ou em
locais de trabalho que incluam as pessoas de acordo com as suas potencialidades
e promovam a valorização das pessoas trans, para se evitar a reprodução de
estereótipos. Não se pode inferir que, pelo fato de alguém ser uma mulher trans
ou uma travesti, essa pessoa deva necessariamente fazer cursos na área de
beleza.
É preciso realizar uma caracterização socioeconômica, educacional, incluindo
mapeamento profissiográfico, acesso aos serviços públicos, identificação de
violências sofridas nos níveis individual, grupal, comunitário e institucional.
Quando penso
na experiência laboral das pessoas trans negras, sobre a qual posso falar não
apenas com conhecimento teórico e investigativo, mas também pessoal, tais
questões se problematizam, e demandam maiores cuidados com a intersecionalidade
de opressões, de cunho racial e de gênero, que não se colocam para as pessoas
trans brancas.
Como tenho
dito frequentemente, uma mulher trans negra, ou uma travesti negra, não
vivencia uma soma de violações e exclusões, mas uma multiplicação delas! E de
forma perversa, porque não necessariamente verbalizada por quem a exclui dos
espaços educacionais e do mercado de trabalho, e não necessariamente visível
para quem observa de fora.
Blogueiras
Negras - No Brasil há pouco material disponível acerca da população
transexual. Apesar de termos uma das maiores taxas de assassinatos e suicídios
vitimando pessoas transexuais, há pouco material disponível tratando sobre essa
população. Tendo em mente esse estado de coisas nefasto, responsável por violências
tanto simbólicas quanto palpáveis, qual é a importância da oralidade na
preservação da vivência de pessoas transsexuais como existências plenas,
sujeitas de sua própria História?
Jaqueline
Gomes de Jesus - Eu aprofundo essa discussão em Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas
transgênero como genocídio, e pontuo que as mulheres trans e as
travestis são alvos recorrentes de uma violência letal de gênero, que pode ser
categorizada como uma forma de genocídio. A professora Berenice Bento tem busca
elaborar essa ideia ao nível sociológico, e propôs o conceito de transfeminicídio,
com o qual concordo.
As
estatísticas oficiais sobre homofobia erram gravemente quando misturam os
números das violações contra pessoas trans com as de pessoas lésbicas, gays ou
bissexuais, e contribuem negativamente para a formulação de políticas de inclusão
próprias às especificidades da população transgênero.
Se já temos
poucos dados sobre as violações contra as pessoas trans, os referentes a
suicídio são praticamente inexistentes, o que é alarmante, considerando os
relatos que ouvimos e os dados de países como os Estados Unidos da América, que
evidenciam como os jovens trans são mais suscetíveis a tentarem o suicídio, e
conseguirem, em decorrência da transfobia que sofrem, do que jovens lésbicas,
gays ou bissexuais, com os quais geralmente são confundidos, erroneamente.
No mais,
quando penso na importância da oralidade para a população trans, eu sei que ela
sempre foi fundamental para a formação de algo que chamo de Cultura Trans, uma
cultura do corpo e do cuidado de si que há pelo menos um século, acredite, foi
iniciada pelas travestis brasileiras, e que segue viva hoje, porém
lamentavelmente sendo invisibilizada e aproveitada comercialmente, tida como
uma genérica cultura LGBT, desconsiderando-se sua importância para a
preservação da identidade e mesmo da vida de milhares de pessoas trans por
gerações.
A Cultura
Trans é, ainda hoje, uma cultura oral, criativa e representativa do que as
pessoas trans pensam e vivem, mas cujo entendimento no contexto histórico não
tem sido reconhecido como deveria.
O meu posicionamento,
com relação à preservação e à consolidação da Cultura Trans, é de que ela
ocorre em 3 níveis: 1) As pessoas trans se reconhecem como cidadãs. Isso ainda
é frágil hoje, pois muitas pessoas trans estão ainda conformadas com as velhas
concepções dimórficas (mulher=vagina; homem=pênis), e se não se entendem como
seres humanos plenos, e não como abjetos, como poderão se entender como
cidadãs; 2) Os parceiros afetivos e políticos das pessoas trans também
partilham da ideologia que permite viver à pessoa viver de acordo com a própria
percepção e como se relaciona com outros, e não em função de uma parte do corpo
ou da genética; e 3) Visibilidade social. Não falo da exposição das vidas
privadas, mas da existência de momentos e espaços especiais onde, eventualmente,
as demandas das pessoas trans, seus parceiros afetivos e políticos se tornem
visíveis para si e para a sociedade em geral: campanhas, textos, vídeos,
internet, debates, exposições… Nas quais as pessoas trans falem de si, por si
mesmas.
É essencial
às travestis, às mulheres e aos homens trans, antes criminalizados e hoje
inferiorizados e patologizados, saber que não são objetos dignos de
curiosidade, de marginalização ou de desejo, porém excluídos. Para esse fim, as
pessoas trans precisam de espaços que possam chamar de “seus”.
Em tal
aspecto, os espaços virtuais surgem como uma alternativa de diálogo, troca de
informações e, até mesmo, de formação de relacionamentos afetivos, sejam quais
forem. Têm sido utilíssimos em mostrar às pessoas trans que elas podem se amar
e serem amadas, e não apenas usadas para entretenimento de outros. E mostrar à
sociedade que elas têm sonhos, amigos, parentes, companheiros. Que são
portadoras de experiências e sensações, de formas de ser.
Leia
artigos de Jaqueline Gomes de Jesus:
Atração e
repulsa interpessoal,
2011. Em C. V. Torres, & E. R. Neiva (Orgs.), Psicologia social: principais
temas e vertentes (pp. 238-249). Porto Alegre: ArtMed.
A cabeça
do libertador, 2011.
Em R. R. Figueira, & A. A. Prado (Orgs.), Olhares sobre a escravidão
contemporânea: novas contribuições críticas (pp. 153-168). Cuiabá: Editora da
Universidade Federal do Mato Grosso.
Feminismo
transgênero e movimentos de mulheres transexuais, com Hailey Alves, 2012.
Disponível em:
http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/article/view/2150/pdf
Orientações
sobre identidade de gênero: conceitos e termos, 2012. Disponível em:
http://www.sertao.ufg.br/pages/42117
Psicologia
social e movimentos sociais: uma revisão contextualizada, 2012. Disponível em
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/4897/3620
O desafio
da convivência: assessoria de diversidade e apoio aos cotistas (2004-2008), 2013. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/pcp/v33n1/v33n1a17.pdf
Alegria
momentânea: paradas do orgulho de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais, 2013.
Disponível em
http://www.fafich.ufmg.br/gerais/index.php/gerais/article/view/287/267
Quem
liberta quem? Percepções de libertadores de escravos no Brasil contemporâneo, 2013. Disponível em
http://www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=7618&dd99=view
Psicologia
das massas: contexto e desafios brasileiros, 2013. Disponível em
http://www.ufrgs.br/seerpsicsoc/ojs2/index.php/seerpsicsoc/article/view/3649/2266
O
conceito de heterocentrismo: um conjunto de crenças enviesadas e sua
permanência, 2013.
Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pusf/v18n3/a03v18n3.pdf
Fonte: Blogueiras Negras
Link: http://blogueirasnegras.org/2014/07/25/entrevista-jaqueline-gomes-de-jesus-em-comemoracao-ao-dia-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha/
Fonte: Blogueiras Negras
Link: http://blogueirasnegras.org/2014/07/25/entrevista-jaqueline-gomes-de-jesus-em-comemoracao-ao-dia-da-mulher-negra-latino-americana-e-caribenha/
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