A PISCINA DE ARMAS DO TIO SAM: POR QUE TANTOS NORTE-AMERICANOS ADORAM UM REVÓLVER?
O novo massacre de crianças em Newtown, Connecticut, traz mais uma vez à baila o espinhoso tema da posse livre de armas nos Estados Unidos. Gabriele Catani, articulista italiano, faz importante análise das causas históricas e psicológicas dessa tremenda compulsão norte-americana pela posse (e o uso) das armas de fogo
Por: Luis Pellegrini
Tio Patinhas possui uma piscina cheia de moedas de ouro. Nela, esse campeão da avareza, criado em 1934 pela pena genial de Walt Disney, mergulha e se refestela, indiferente às mazelas do resto do mundo e da humanidade. Mas só na superfície o velho pato sovina das histórias em quadrinhos existe para divertir as crianças. Ele é, na verdade, uma metáfora: um dos muitos heróis míticos inventados por Disney para trazer à consciência coletiva americana os vários padrões e arquétipos de arrogância e descomedimento que, desde o início, povoam a cultura violenta, puritana e argentária do grande país do norte.
O artigo que transcrevemos mais abaixo, "A cultura das armas nos Estados Unidos", de autoria do jornalista e estudioso italiano Gabriele Catani, examina outro desses padrões arquetípicos, muito próximo do modelo Tio Patinhas: o do cidadão que só se sente seguro quando vai ao mundo carregando seus revolveres pendurados nos coldres. E que, quando enlouquece – o que acontece com excessiva frequência – descarrega suas balas nas cabeças dos mais próximos. De preferência, na cabeça de escolares indefesos. Como acaba de acontecer, mais uma vez, há poucos dias, na localidade de Newtown, no Connecticut, com a morte de vinte crianças e sete adultos.
Desgraça pouca é bobagem, e nada atrai tanto o sangue do que o próprio sangue. Assim, um dia depois do massacre de Newtown, um outro doido abriu fogo no hospital Saint Vincent, em Birmingham, Alabama, ferindo três pessoas antes que a polícia o matasse. Os três feridos (um policial e dois funcionários do hospital) estão fora de perigo.
Com esses episódios, nos Estados Unidos, mais uma vez se reacende a polêmica sobre a posse de armas. Um argumento que divide as consciências e que move enormes interesses econômicos. Barack Obama faz o que pode, e não esconde seu desejo de criar leis que impeçam a livre circulação de armas no território nacional. Mas por limites à posse e ao comércio (demasiado fácil) de armas é um desafio quase impossível para a Casa Branca. Qualquer presidente norte-americano deve levar em conta a segunda emenda da Constituição dos EUA, que garante ao cidadão o direito de possuir armas. Aprovada em 1791, essa emenda é desde sempre objeto de críticas e discussões entre os que acham que ela se refere apenas ao exército e às forças da ordem, e aqueles que consideram que ela diz respeito também aos cidadãos privados.
Mais recentemente, em 2008 e em 2010, a Suprema Corte se pronunciou sobre o direito de possuir armas. Estabeleceu, como interpretação definitiva, que o direito individual de possuir e portar armas não está vinculado ao fato de se pertencer a alguma milícia. Eis porque qualquer político norte-americano que queira confrontar-se com o problema, para além dos posicionamentos tradicionais, não pode fazer de conta que não existe esse importante obstáculo jurídico.
Na política norte-americana o lobby das armas, com a poderosa National Rifle Association atuando na linha de frente, desempenha um papel de peso. A NRA mais de uma vez conseguiu bloquear ou pelo menos obstaculizar numerosas leis estaduais sobre o controle das armas. Mas é preciso lembrar que, apenas para dar um exemplo, o Estado do Connecticut, que se gaba de ter algumas das leis mais restritivas sobre armas de todo o país, foi agora mesmo palco de um terrível massacre por arma de fogo...
Diante desse quadro, o jornal Washington Post acaba de escrever que certos episódios de sangue têm escassa influência sobre a opinião pública norte-americana no que diz respeito ao controle das armas de fogo. A última pesquisa do Pew Research Center, feita em julho último, logo depois do massacre em um cinema de Aurora, no Colorado, no qual perderam a vida 12 pessoas, revela: 47% dos norte-americanos acham que a coisa mais importante é controlar a posse de armas; 46% afirmam que a coisa mais importante é proteger o direito de possuir uma arma. Tais percentuais praticamente não variaram em relação à pesquisa precedente, realizada em abril.
Enquanto isso, vem a notícia de que em Oklahoma foi possível, por muito pouco, evitar-se um novo massacre: um rapaz de 18 anos, Sammie Eaglebear Chavez, foi preso em sua casa de di Bratlesville, sob a acusação de ter planejado e estar a ponto de realizar um assalto com bombas e armas de fogo contra os seus colegas de escola. Foi preso na última sexta-feira, poucas horas depois dos acontecimentos em Connecticut.
Que fará a Casa Branca? O tema do controle das armas será enfrentado, assegurou o porta-voz de Obama, Jay Carney. Mas não é uma prioridade neste momento. Muito tempo poderá se passar antes que qualquer intervenção aconteça. Poucas horas depois do massacre, o presidente disse: "Temos de nos unir e desencadear ações significativas para prevenir que outras tragédias como essa aconteçam". Belas palavras, mas é provável que no curto prazo nada se faça. Por que? Obama sabe que não pode irritar os republicanos com alguma providência muito restritiva sobre armas: neste momento, é fundamental para ele chegar a um acordo com os republicanos para evitar o "fiscal cliff" (o abismo fiscal), o aumento automático dos impostos e dos cortes dos gastos públicos que aconteceria a partir de 1º de janeiro. O tema segurança, portanto, terá de esperar. Só esperamos que até lá não aconteçam novos massacres para, novamente, trazer o tema à ordem do dia.
A CULTURA DAS ARMAS NOS ESTADOS UNIDOS
Por Gabriele Catani. Publicado no jornal digital italiano Discorsivo (www.discorsivo.it) em 30/10/2012
A relação dos norte-americanos com as armas começa a partir de uma data simbólica, 6 de setembro de 1620, quando um pequeno grupo de 102 colonizadores ingleses e holandeses, conhecidos como "pais peregrinos", desembarcaram em solo americano, dando início, de fato, ao êxodo em massa em direção ao Novo Mundo por parte de todos os países do Norte da Europa. Como se lê nos livros de história, a partir do final do século 18 as relações entre os colonos e a mãe pátria tornaram-se tensos, devido aos altos impostos e aos vínculos comerciais que impunham às 13 colônias um comércio consentido exclusivamente com a Grã-Bretanha. Quando estourou a "Independence War" (Guerra de Independência), os futuros cidadãos dos Estados Unidos tiveram de construir pela primeira vez uma identidade real e própria, combatendo contra os seus "pais", e contando inclusive com a ajuda dos odiados (pelos ingleses) franceses. Em 1787 foi ratificada a Constituição, a qual garantia o direito à liberdade e à busca da felicidade por parte de todo e qualquer cidadão.
Com o tempo, o conceito de liberdade assumiu, em sua acepção, o conceito mais amplo de eliminação dos obstáculos que se interpõem entre o indivíduo e a liberdade, ou seja, de eliminação dos outros indivíduos que ameaçam a própria felicidade e bem-estar. A Carta dos Direitos contem as primeiras dez emendas da Constituição; a segunda emenda garante o direito de possuir armas sem, no entanto, especificar se se tratam de cidadãos privados ou de milícias estatais: depois de acalorados debates em 2008, a Suprema Corte dos Estados Unidos avalizou a hipótese de que ela se referia a privados, e isso explica (embora sendo apenas uma peça de gigantesco quebra-cabeça) como, nos Estados Unidos, as armas podem circulam de forma tão livre e acabar, facilmente, nas mãos de pessoas erradas.
A compreensão da relação que existe hoje entre os norte-americanos e as armas deve necessariamente partir da análise de um substrato cultural.
Antes de tudo, o estado de sociedade rural e destituída de civilidade no qual se encontrava a América do Norte no momento do estouro da guerra com o Reino Unido: naquele tempo, as colônias eram pequenas e favoreciam a formação de homens "aventureiros", vivendo em contato direto com a natureza ainda não contaminada. Além disso, a propriedade privada já era com certeza um valor sagrado e indestrutível para os norte-americanos. Nos Estados Unidos, os territórios sem limites e repletos de insídias naturais fizeram (sobretudo nos Estados do Sul, que eram então os menos industrializados e destituídos de grandes metrópoles) com que a segurança pessoal fosse ligada à posse de armas de fogo. Pode parecer paradoxal que a religião, tão radicada na cultura norte-americana, não gritasse contra o fato de se possuir armas e a ampla liberdade existente para o seu uso. Mas isso não deve surpreender se analisarmos as palavras pronunciadas há poucos meses pelo "puritano" Rick Santorum - candidato para a nomeação republicana à presidência dos Estados Unidos na eleição de 2012 -, depois de atirar contra um cartaz de tiro ao alvo: " Estou apenas exercitando uma das liberdades fundamentais garantidas pela nossa Constituição". O bom cristão, na América, é aquele que mata um inimigo perigoso para a coletividade: as armas permitem eliminar o inimigo, portanto é justo fazer uso delas. Na esteira disso tudo inscreve-se também a política bélica dos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial (guerra da Coréia, do Vietnã, no Iraque, a quase guerra com Cuba e a União Soviética).
O evento no qual as armas, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, revelaram o seu impressionante potencial destrutivo, foi durante a célebre "Guerra Civil". Essa guerra é considerada precursora dos dois conflitos mundiais por diversas afinidades: a utilização de armamentos poderosos e as consequências sangrentas que eles provocaram, o seu avanço tecnológico, a guerra total (em terra e no mar), o combate "até a última gota de sangue", ou seja, usando-se todos os homens e todos os recursos disponíveis antes de se render. Diz o historiador italiano Raimondo Luraghi, uma das maiores autoridades mundiais desse conflito: "Nas origens do conflito está o impetuoso desenvolvimento industrial do Norte, do qual emergem novas classes, empreendedoras e operárias, que professam uma ideologia nacionalista e querem depor a hegemonia até então exercida pela aristocracia agrária do Sul". Muitos norte-americanos compreenderam então que o único modo de resolver a disputa entre os dois modelos econômicos era a guerra e foi assim que "o presidente unionista Lincoln conseguiu forjar 'a ferro e fogo', como dizia Bismarck a propósito da Alemanha, a nova identidade nacional, numa espécie de segunda revolução americana depois daquela contra os ingleses". As armas, portanto, eram o único modo de se livrar da agressividade dos sulistas e tutelar os interesses dos nortistas.
Depois da guerra de secessão, a potência econômica e militar dos Estados Unidos cresceu de forma desmesurada, a ponto de decidir o destino das duas guerras mundiais que a sucederam.
O binômio armas/poder permanece nos dias de hoje, tanto no plano político (faculdade de agir para proteger os cidadãos, em nome de Deus) quanto no plano individual (poder de eliminar qualquer um que pareça representar um perigo para mim), já que legitimado pela política e, portanto, pela lei.
Hoje, o direito ao porte de armas nasce do liberalismo do século 20. É produto do "direito à revolução" nascido nos séculos 18 e 19, embora a NRA (National Rifle Association, que batalha em prol da posse de armas estendida a todos os cidadãos) tenha tido um grande peso na maior liberação das armas de fogo em toda a história: depois de ter apoiado Ronald Reagan nas eleições de 1980, obteve dele a permissão de interpretar a seu favor a segunda emenda da Constituição, abrindo caminho para a circulação de armas entre os privados. Entre 1968, ano da lei sobre o controle de armas depois dos assassinatos de John Kennedy e Martin Luther King, e 2012, lembra o jornalista do New Yorker Jill Lepore, as leis a propósito da posse de armas foram "abolidas, distorcidas, amaciadas ou deixadas a expirar", exatamente porque carregar armas, inclusive escondidas, é um direito do cidadão, como estabelece a lei de 49 Estados norte-americanos (Illinois é o único Estado que resiste), influenciados pelos superpoderes dos lobbies das armas. Em 2004 "a proibição federal de possuir, carregar ou fabricar armas semiautomáticas expirou e não foi renovada". A Flórida, em 2005, aprovou uma lei, seguida por outras leis similares em outros 24 Estados, chamada "Stand your ground", que exime de qualquer procedimento penal quem usa a força para se defender de uma agressão, mesmo no caso em que possa facilmente escapar ou fugir dela. A lei estende esse tipo de autodefesa não apenas à própria casa mas a qualquer lugar em que o indivíduo tenha o direito de estar. Isso não é tudo: 40% das armas que circulam nos Estados Unidos foram compradas em feiras ou através de transações privadas (por exemplo, respondendo a um anúncio publicado em algum jornal ou revista).
Tudo isso apresenta consequências indesejáveis: nos Estados Unidos, cerca de 300 milhões de armas estão nas mãos de civis, uma pessoa de cada três conhece alguém que levou um tiro, o número dos homicídios em massa, como aqueles que seguidamente acontecem nas escolas, não diminuem. No entanto, muitos norte-americanos sustentam que possuir uma arma é um direito inviolável e que a solução, para aumentar a segurança, é aumentar o número de armas em circulação.
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