Nos 30 anos do pornô brasileiro, ‘Coisas eróticas’ ganha livros e filme


RIO - O choro brasileiro na Copa de 1982 fez a alegria de Rossi. Não Paolo Rossi, autor dos gols da Itália que eliminaram o Brasil, e sim o diretor Raffaele Rossi. A celebração era menos por sua origem italiana do que pelas três mil pessoas que lotavam as sete sessões diárias de seu filme, "Coisas eróticas". A estreia aconteceu em 7 de julho, dois dias após o jogo. O dono do Cine Windsor, Francisco Luccas, havia dito: "Rossi, vamos lançar amanhã. Vamos aproveitar que estão todos tristes com a Copa. E daí o pessoal se anima com seu filme!" E, de fato, se animou. Oficialmente foram 4 milhões e 729 mil pessoas, mas há quem fale em 8 milhões apenas nos seis primeiros meses. Em muitos cinemas do interior, o bilheteiro não rasgava o ingresso e vendia a entrada de novo. E parte do público entrava pelos fundos, sem pagar.O primeiro filme brasileiro de sexo explícito tornou-se um marco contra a Censura. Lançado durante a ditadura militar, logo após o presidente Figueiredo fazer um duro discurso condenando a pornografia, ele tem sua história contada em um livro e um documentário, no momento em que completa 30 anos. Além disso, Fábio Fabrício Fabretti narra a impressionante história de uma das protagonistas do filme na biografia "Jussara Calmon, muito prazer" (Giostri Editora), que será lançada dia 10 na loja Super Vídeo, em Ipanema.

Fim das chanchadas e da boca do lixo

O sucesso de "Coisas eróticas" assinala a derrocada das pornochanchadas, gênero que conquistou milhões de brasileiros com musas como Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Zaira Bueno, Débora Muniz e Aldine Müller.

— Quem pagaria para ver insinuação se já era possível ver sexo? Ele impôs aos outros cineastas que ou fizessem filmes de sexo explícito ou não fizessem mais cinema — diz a jornalista Denise Godinho, que escreveu com o também jornalista Hugo Moura o recém-lançado "Coisas eróticas — A história jamais contada da primeira vez do cinema nacional" (Panda Books).
Ao lado de Bruno Graziano, eles fizeram ainda o documentário "A primeira vez do cinema brasileiro".Era um novo ciclo que surgia, em que o erótico dava lugar ao pornográfico.

— A Boca do Lixo acabou com o advento dos filmes pornô — diz Moura, referindo-se ao grande polo cinematográfico paulistano.
Logo depois de Raffaele, Claudio Cunha lançou em outubro aquele que talvez seja o maior clássico do pornô nacional, "Oh! Rebuceteio", que passou em janeiro último numa retrospectiva sobre a Boca do Lixo no Festival de Roterdã, na Holanda.

— Foi muito aplaudido. Ficaram impressionados com a criatividade com que filmávamos na época, com nossos movimentos de câmera. E como fazíamos tudo com US$ 40 mil — diz Cunha.
A partir daí, veio um filme atrás do outro, e o público se cansou. Tanto que Raffaele não repetiu o sucesso com "Coisas eróticas 2", em 1984. Até que José Mojica Marins, o Zé do Caixão, inovou ao mostrar zoofilia. Seu "24 horas de sexo explícito" trazia Vânia Bonier — também atriz de "Coisas eróticas" — em cena com um cachorro.

— As salas começaram a exibir filmes de sexo entre mulher e peixe, mulher e macaco, mulher e cavalo. Tudo para chamar a atenção de um público que já tinha visto de tudo — diz Denise.
Nos nove anos após "Coisas eróticas", dos 697 filmes lançados pela Boca do Lixo, 60% eram explícitos. Tanta oferta cansou. Na mesma época, o videocassete se popularizou, e a pornografia made in Brazil saiu de moda, pelo menos até que a produtora Brasileirinhas contratasse nomes como Alexandre Frota, Rita Cadillac, Gretchen, Leila Lopes e Regininha Poltergeist.

O Brasil chegou atrasado ao cinema pornô. O pioneiro "Coisas eróticas" estreou dez anos após os americanos verem "Garganta profunda". Em 1976, foi a vez dos japoneses, com "O império dos sentidos". O filme de Nagisa Oshima, aliás, serviu de inspiração para "Coisas eróticas". Ele passou aqui em 1979, na Mostra Internacional de Cinema. Raffaele Rossi, nascido em Arsiero e no Brasil desde os 16 anos, estava na fila que circundava o Museu de Arte de São Paulo. Detestou a obra japonesa. Achava que não excitava e beirava a escatologia. Resolveu fazer o seu. Era uma ideia insana. Raffaele tinha fama de mau pagador, a Censura estava em vigor e ele corria o risco de ir parar na cadeia. Levou duas semanas para rodar e mais de um ano para liberar. Natural. O filme ficou pronto pouco antes de o presidente João Baptista Figueiredo discursar que "a obscenidade e a pornografia se infiltraram por toda parte".

"Coisas eróticas" é composto de três histórias independentes. A primeira traz quatro atores, entre eles Oásis Minniti e Jussara. A última conta com Zaira Bueno, a única atriz que se recusou a fazer sexo. Mas é o episódio do meio que apresenta as cenas mais fortes, com sexo grupal e sadomasoquismo. Tanto que o Departamento da Censura determinava seu corte integral, transformando "Coisas eróticas" numa obra de 47 minutos em vez dos 87 originais. E assim teria sido, caso Raffaele não tivesse percebido um detalhe. Os censores haviam ordenado o "corte integral do segundo quadro", em vez de escreverem história, capítulo ou episódio. E com isso ele mandou tirar apenas o segundo fotograma do filme. Quando o governo se deu conta de que havia sido enganado, 15 dias depois, 60 mil pessoas tinham visto o longa. O escândalo levou a Polícia Federal a correr o país recolhendo cópias. "Coisas eróticas" só voltaria aos cinemas dois meses depois, com um mandado de segurança.

O cartaz exposto na fachada do Cine Windsor mostrava uma mulher nua, deitada na água, embaixo da frase: "...E assim!... Conheceram as maravilhas do sexo!" A imagem atraía a atenção de todos. 

Uma das histórias mais pitorescas do livro diz respeito à dona da bunda: "É minha!", diz Vânia, explicando que durante as filmagens Laerte Calicchio, roteirista do filme e diretor do segundo episódio, pediu que ela se deitasse na beira da praia. "De jeito nenhum! É da Marília!", garante o montador do filme, Walmir Dias, referindo-se à atriz Marília Nauê. Ele explica que a foto foi feita a partir de um frame não usado na montagem final. "Gostou? É minha", fala Jussara Calmon. Laerte desfaz o mistério. Ele conta que Raffaele viu na revista "O Cruzeiro" um travesti numa piscina. "Dá um bom cartaz, não dá, Laerte?" A dupla pegou uma câmera e fotografou a página, copiando a foto.
Voz de Fred Flintstone

Outra passagem curiosa trata do áudio. As vozes eram inseridas depois, porque não havia tecnologia para captar o som direto. Só que o ator Andrev Solar não pôde estar no estúdio na hora da dublagem e foi substituído por Marthus Mathias, conhecido por ser a voz de Fred Flintstone. Numa cena em que dois homens se acariciam, "Fred" diz: "Cuidado com o dedão aí."

Pornô brasileiro recordista de público — 13º na lista geral —, "Coisas eróticas" tem mais valor histórico que cinematográfico, dizem Moura e Denise.

— Ele é malfeito, cheio de erros de continuidade e diálogos bizarros. Mas acho que provocou um orgulho nacional — conta Denise, explicando que o filme mostrou para o Brasil, usando atores nacionais, o que antes só se fazia entre quatro paredes.

Eles explicam que o brasileiro, que estava acostumado à pornografia estrangeira das revistas ou dos filmes clandestinos em Super-8, passou a ver o biotipo nacional na tela: a "morena jambo com marca de biquíni", a "mulata que via na padaria", o "cara normal com barriga saliente".

— Sem falar na importância pelo caminho que trilhou no sentido de liberação de costumes — diz Moura. — É como se as pornochanchadas fossem as preliminares. O público atravessou a década de 1970 nelas. E aí "Coisas eróticas" surgiu para ir às vias de fato.

Vânia Bonier e Jussara Calmon, as duas principais estrelas do filme "Coisas eróticas", seguiram trajetórias distintas. Vânia continuou no pornô até "24 horas de sexo explícito", enquanto Jussara saltou para o teatro e a TV, onde participou de novelas como "A gata comeu", "O outro", "Mandala" e "Vale tudo", e trabalhou no teatro de revista, onde foi vedete e contracenou com Grande Otelo, Ankito, Colé e Henriqueta Brieba.

— Fui para a Globo, em função da visibilidade alcançada com o filme. Foi meu "Abre-te Sésamo" — diz ela, apelidada pelos jornais de "a nova coqueluche do cinema" e "o coração da Boca", após o filme.

Ela nunca se arrependeu de ter feito "Coisas eróticas", embora não tenha orgulho. Tanto que a produção foi seu primeiro e último pornô.

— O filme está completando 30 anos, mas continuo com o corpinho de 20 — diz, com bom humor, Jussara, que vive com o marido na Noruega, onde dá aulas de teatro para alunos de escolas estaduais.

Ela, que cresceu numa favela, sofreu abusos, fez dezenas de pornochanchadas, virou musa do carnaval e dormiu com homens como o ator Robert De Niro, tem planos de voltar a trabalhar no Brasil.

Quem também teve raras incursões pelo cinema XXX foi José Mojica Marins. Seu "24 horas de sexo explícito", de 1985, inaugurou a zoofilia no cinema nacional. O produtor Mário Lima prometeu que se rendesse dinheiro ele bancaria "Encarnação do demônio".

— Foi um desafio, porque todo mundo dizia que eu não conseguia fazer nada de sexo. Eu queria mostrar que não fazia porque não gostava do gênero. Acabou sendo um estouro de bilheteria e ficou um ano em cartaz. Mário quis fazer "48 horas de sexo alucinante", mas o público já estava saturado.
Claudio Cunha também queria dar uma resposta ao filmar "Oh! Rebuceteio".

— Quando comecei a fazer teatro, fui recebido pela classe como diretor pornô. Resolvi dar uma gozada nos intelectuais e mostrar como foi duro ser cineasta na ditadura — diz ele, que em seu filme fez uma paródia de Oh! Calcutá" e agora luta para rodar um remake de seu "Amada amante", de 1978.

Com a pirataria e a internet, a indústria pornô enfrenta problemas, mas o Brasil ainda é um polo mundial. A Brasileirinhas apostou nos famosos para revitalizar o gênero. Rita Cadillac foi uma delas:

— Não fiz para chamar a atenção, para entrar na mídia. Fiz pelo aspecto financeiro. Foi o meu "BBB". Rodei 20 cenas e eles podem fazer quantos filmes quiserem com elas.

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