Agora é a vez de os homens cantarem Elis

Pedro Mariano e Cauby Peixoto (Foto: Dani Gurgel/Divulgação; Acervo Editora Globo)

Dalva de Oliveira (1917-1972) influenciou o canto de Angela Maria, que influenciou o de Elis Regina (1945-1982), que influenciou o de uma porção de cantoras que surgiram após sua geração. É normal – em qualquer profissão – se guiar pelos grandes modelos. Eles são inspiradores. Mas será que uma artista como Elis influenciou apenas cantoras?

O cantor Pedro Mariano – filho de Elis e do pianista César Camargo Mariano, arranjador de 11 dos 28 discos lançados pela cantora ao longo de sua carreira, – quer mostrar, com o projeto Elis por Eles , que a arte da cantora inspirou também vozes masculinas, músicos e compositores.

Para isso, ele fez uma lista de 14 convidados baseada em afeto e elos que possam chegar ao legado deixado por Elis. Dos que conviveram de fato com a cantora, estão Jair Rodrigues, com quem Elis dividiu três discos e a apresentação de um dos mais importantes programas de televisão da década de 60, O fino da bossa, e Cauby Peixoto, de quem Elis se declarava fã e com quem dividiu os vocais na faixa “Bolero de Satã”, no disco Essa mulher, de 1979.

Chitãozinho & Xororó representarão a música sertaneja, da qual a cantora tirou a poeira em 1977 ao gravar “Romaria”. O pernambucano Lenine levará a bandeira dos grandes compositores, para quem Elis sempre demonstrou fidelidade. Seu Jorge dará o tom do samba, ritmo sempre reverenciado pela artista. O gaúcho Filipe Catto, de 25 anos, representará o novo que Elis sempre buscou e se orgulhou de revelar (confira, no final desta reportagem, todos os artistas que participarão da homenagem).

O show Elis por Eles – que será registrado para o lançamento de CD e DVD pelo selo de Pedro, Nau, - será no dia 2 de agosto, no Teatro Positivo, em Curitiba, em uma única apresentação (a cidade foi um pedido da patrocinadora do show, a Volvo). O projeto de Pedro, embora não tenha nenhuma ligação com o Viva Elis, comandado por seus irmãos, João Marcello e Maria Rita, soma-se a diversas iniciativas que estão sendo feitas para marcar os trinta anos de ausência de Elis.

Em conversa com ÉPOCA, Pedro falou sobre o projeto, da escolha dos artistas e músicas e deu sua análise sobre a mãe. “É chocante a disparidade técnica e vocal da Elis em relação a qualquer outra cantora brasileira”, disse.

ÉPOCA - Você tem esse projeto desde 2009. Há tempos você tenta realizá-lo ou ele foi planejado para acontecer neste ano, quando Elis está sendo bastante lembrada?
Pedro Mariano –
 Esse projeto foi idealizado por duas produtoras que me convidaram para ser o diretor-geral. A ideia era fazê-lo de imediato , não estávamos esperando uma data redonda (os 30 anos de morte de Elis). Mesmo porque esse tipo de show, com um número grande de artistas, é impossível você montar e esperar uma data É complicado conciliar a agenda de todos. Ficamos esperando a verba de patrocínio. Ela saiu no final do ano passado. Com tudo certo para o projeto, tínhamos uma lista enorme de convidados. Esse elenco final é de cantores que se dispuseram a participar, que se identificaram com a proposta. A partir disso, fizemos uma grande manobra para ajustar a agenda de todos. Por exemplo, o Emílio Santiago vai estar um dia antes em Recife. Irá para Curitiba, vai cantar e depois voltará para Recife para outro show.

ÉPOCA – O que você acha importante ter nesse show para que seja, de fato, uma homenagem para Elis?
Pedro –
 Autenticidade e verdade. A começar pela escolha dos artistas. Quando se fala em homenagem para Elis, é ato contínuo colocar uma ou várias cantoras cantando suas músicas. Mas você não vê as pessoas citando a influência de Elis em nenhum cantor, banda ou compositor contemporâneo ou posterior a ela. Quando você muda isso, fica interessante. Conversando com os convidados desse projeto, eu fui descobrindo qual foi o impacto da Elis na carreira deles. Isso tanto nos artistas mais velhos, que tiveram alguma convivência com ela ou a assistiram ao vivo, quanto nos mais novos, da minha geração ou posterior, que acompanharam mais o final da história dela. Acho importante mostrar para as pessoas que Elis não influenciou só as cantoras, isso é lugar comum já. Além da interpretação e do canto, tinha a postura política, a forma como ela escolhia suas músicas, como ela interagia com os arranjos.

ÉPOCA – Como você chegou à lista de convidados? O que o guiou diante de tantas opções?
Pedro 
– Tem o gosto pessoal, óbvio. Seria hipócrita da minha parte negar que não fui atrás dos artistas de que eu gosto. Mas também corri atrás de uma coerência em função do universo musical que a Elis percorreu ao longo da carreira dela. Ela flertou com quase todos os estilos musicais brasileiros. Os discos dela passaram, em algum momento, pelo sertanejo ou pela música nordestina, por exemplo. Tudo de forma muito natural. Tentei buscar nomes que representassem isso. No mais, fui atrás de artistas que eu sempre pensei que se pegassem uma música da Elis iriam se dar bem, quebrar tudo. Também tentei contemplar a nova geração, da minha idade ou menos (Pedro tem 37 anos). Um dos exemplos disso é o Filipe Catto, um artista que nasceu na década de 80 e que tem uma intimidade com a obra da Elis . Ele já fez homenagens lindas para ela. Tanto que a música que ele escolheu, “Tatuagem”, já fez parte do repertório d e shows dele.

ÉPOCA – E quem você sempre imaginou cantando músicas da Elis, por exemplo?
Pedro 
– Alguns eu cheguei a ouvir mesmo antes desse projeto, como Chitãozinho e Xororó que cantaram “Romaria”. O Xororó me falou da importância da Elis ter gravado essa música em 1977, que foi um chancela para a música sertaneja. Eu até pensei que eles iriam cantar essa música no show, mas eles escolheram “Como nossos pais”. O Seu Jorge escolheu “Cai dentro”, e, apesar de ser um samba todo ‘quebrado”, que é a praia dele, ele me disse: ‘Pô, precisa abaixar o andamento dessa música. Sua mãe era do morro’. Ou seja, brincando que ele, que de fato é do morro, não iria conseguir cantar um samba que minha mãe, que era de Porto Alegre, conseguiu. Mas essa é a ideia do projeto: sair da zona de conforto, do lugar comum, arriscar.

ÉPOCA – Como você definiu o que cada artista iria cantar?
Pedro 
– Eu deixei o convidado escolher. Claro, tive o cuidado para que canções importantes na carreira dela não ficassem de fora. Mesmo assim, algumas emblemáticas não foram escolhidas. Não é um projeto de lado B da Elis, mas músicas como “Fascinação” e “As aparências enganam” não foram citadas. Corri esse risco. Talvez, aí, entre o universo masculino. O pessoal se identificou mais com os sambas ou por músicas como “Como nossos pais”. Isso dá um colorido interessante. Mostra a força do trabalho dela.

ÉPOCA - A participação do Cauby Peixoto no projeto já foi gravada, em estúdio. Como foi?
Pedro -
 O Cauby teve que gravar antes. Ele tem uma outra viagem na mesma semana do show e ficaria pesado para ele ir até Curitiba. Mas uma homenagem à maior cantora do país tinha que ter o maior cantor do país. Resolvemos gravar em estúdio. Ele ficou muito feliz. As conversas, antes da gravação, já foram deliciosas. Quando escolhemos a música, “Dois pra lá, dois pra cá”, ele começou a cantá-la por telefone mesmo. Ele cantando de um lado e eu chorando do outro. Aliás, as conversas com todos os artistas estão sendo emocionantes. Com isso, eu tenho percebido o quanto ela foi importante. É um orgulho para mim. O maior presente que eu poderia ganhar neste ano é redescobrir, efetivamente, minha mãe. E redescobrir pelos olhos dos outros, o que é muito legal. Aspectos que eu nem imaginava. Cauby, por exemplo, disse-me que trocava confidências com a Elis, que falavam de amores, ficavam de mãos dadas. Ele disse que queria morar com Elis só para ficar conversando com ela o dia todo. São detalhes, coisas pequenas, que nem são bombásticas, mas me ajudam a remontar na minha cabeça a imagem de uma pessoa que tive oportunidade de conhecer muito pouco.
Elis Regina e Pedro Mariano (Foto: Arquivo de família)
ÉPOCA - Por que você escolheu “O bêbado e a equilibrista” para cantar no show?
Pedro –
 Na verdade, eu não a escolhi. Ela que me escolheu. Eu sentei para ouvir algumas músicas pré-selecionadas e, por um erro tecnológico, o disco Essa mulher, que tem essa música, estava nomeado errado no meu computador. Dei um play e “O bêbado e a equilibrista” começou a tocar. Depois, sentei no chão junto com minha filha para recolher alguns brinquedos e comecei a cantar essa música, no meu tom - no da Elis é impossível de cantar. Eu me senti muito bem. Fiquei tomado por uma sensação muito boa. Passei mais uns três dias cantando essa música. Como nenhum outro artista a escolheu , decidi, então, que essa seria minha escolha. Vai ser difícil cantá-la, vai doer. Mas gosto de desafios. A última frase dessa canção é ‘o show de todo artista tem que continuar’. E é isso mesmo.

Época – Você tinha pensado em alguma outra música para cantar?
Pedro –
 Tinha pensado em “Atrás da porta”. Foi a primeira música que meu pai e minha mãe gravaram juntos. Apenas piano e voz. Só os dois no estúdio. Por isso, ela é muito importante para mim. Mas é o Lenine quem vai cantá-la. Nós conversamos e ele é muito parecido comigo. Somos passionais, assim como Elis era. O Lenine tem personalidade suficiente para encarar os versos finais dessa música que dizem ‘até provar que ainda sou tua’.

ÉPOCA - Em entrevistas, a Elis dizia que você era o cantor da casa, era muito afinado, que decorava as letras até antes dela. Você se lembra desses momentos de cantoria?
Pedro –
 Não, realmente não me lembro. Tenho pouca lembrança da minha mãe (Elis morreu quando Pedro tinha seis anos de idade). O que me lembro é do meu irmão, o João Marcello, me ‘pentelhando’, correndo atrás de mim com um gravador na mão pedindo para eu cantar. A intenção dele era mostrar para as pessoas como eu cantava bem. Se ele tinha essa ideia, acho que, provavelmente, ouviu algum adulto falando sobre isso. Mas o Milton Nascimento também já me falou que eu cantava desde pequeno. Deve ser verdade...


ÉPOCA – Caetano Veloso declarou em uma entrevista que só Elis chegou ao estrelato em primeiro lugar. Você consegue se distanciar da sua mãe e fazer uma análise da importância da Elis dentro da música brasileira?
Pedro –
 Consigo. Consigo porque eu convivi infinitamente mais com a Elis Regina artista do que com a Elis Regina mãe. Sendo bem lúcido, eu concordo plenamente com o Caetano. Ela está em um nível acima de tudo o que foi feito na época dela e do que vem sendo feito até hoje. É chocante a disparidade técnica e vocal dela em relação a qualquer outra cantora brasileira. Ela tinha café no bule em quantidades absurdas. Para mim, Elis é uma das maiores cantoras que já vi cantar no mundo. Estou ouvindo algumas gravações caseiras dela, feitas descompromissadamente. Até dessa maneira, ela era muito boa. Claro, eu tenho a consciência de que esse posto de “a maior” também tem a ver com a ausência dela. Mas pessoas como ela, o Pelé, o Senna alcançam um patamar de excelência que não tem quem tire. Às vezes penso que ela era de outro planeta, tamanha genialidade. Fico feliz de poder celebrar o legado dela. Tenho certeza que ela ficaria amarradona neste show.

ÉPOCA – Os 30 anos sem Elis têm gerado inúmeras iniciativas em torno da obra dela. Uma cinebiografia foi autorizada, uma peça anunciada. Como vocês, filhos, estão lidando com esse assédio?
Pedro –
 Temos que ter discernimento. O Hugo Prata, que vai dirigir a cinebiografia, é meu amigo, é amigo do meu irmão. Eu, Pedro, digo que ele tem a minha total confiança. Claro que é complicado. Uma cinebiografia vai tocar em assuntos delicados, que mexem com nós filhos. Mas, além do Hugo, o Nelson Motta também está no projeto (Motta será o roteirista). Acredito que eles vão fazer um trabalho respeitoso. Sobre a peça, ainda não recebemos o roteiro, só um pedido de autorização de uma produtora interessada em desenvolver o projeto. Sempre fomos muito reticentes em relação a isso, confesso. Principalmente porque apareciam coisas totalmente sensacionalistas. Mas as propostas estão ficando cada vez mais maduras. E, com o passar dos anos, o distanciamento do luto tem nos permitido uma segurança maior para esquecer o parentesco e pensar na artista Elis, em projetos para trabalhar a imagem dela, principalmente entre os jovens. Posso adiantar que cada herdeiro também tem uma ideia para que isso aconteça. Ainda não chegamos a um denominador comum, mas todas as ideias são muito boas. Pode ser até que apareça mais de uma iniciativa nesse sentido.

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